quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Branco - capitulo 2

Capitulo 2



Os dias passam sem novidades, os grupos se formam e eu acabei jogada de lado  é a fama de esquisita pegou, sou como um fantasma de corpo presente, aquela que ninguém vê, aquela que ninguém conversa ; um párea social.
Respirei fundo, mais um tormento de aula a enfrentar.
Hora da educação física, eu realmente odeio essa aula. O que realmente me irrita é ter de socializar com pessoas que preferiam que eu desaparecesse, um dos motivos pra que eu desistisse de jogos coletivos. Restou então à ginástica e a natação. Ginástica significa roupa curta e suada no final da aula, natação é ser obrigada a usar aquele maiô ridículo e ter a pele e o cabelo intoxicado de tanto cloro, claro que isento de suor, afinal quem soa dentro d’água? É adivinhe onde acabei  dentro da piscina. Por um lado é ótimo, sem suor e ainda evito o contato direto com boa parte da turma, pelo menos no quesito “conversa sociável”.
— Kyra pra água! – O grito autoritário do professor “Ted Dawson” seguiu-se das costumeiras risadinhas. Claro que ele não é o “Ted Dawson” de verdade, só o lembra vagamente, o que não o impede de se considerar o próprio irmão gêmeo dele, isso se o pobre do Ted tiver um, a verdade é que eu sequer me lembrava do nome dele. Há anos que todos só o chamam assim, creio que desde que a escola existe, tipo um zilhão de anos.
— Kyra a miss cloro xixi passando. – Clara, soltou a risadinha de deboche sempre pronta, ela é o próprio veneno em pessoa, as vantagens em se ter um pai rico que molha a mão do diretor para os feitos da princesa dele. O que será que aconteceria se ela mordesse a própria língua? Será que seria preciso tomar soro antiofídico? Um dia gostaria de ver isso.
— Vai lá Kyra, salte. – Alguém gritou caindo na risada em seguida.
— Aê sereia.  Outro gritou.
— Porcaria de vida. Eu devia ter escolhido ginástica, mesmo sendo obrigada a agüentar os olhares tortos da Lilith. – Obvio que eu estava furiosa, quem não estaria sendo a eterna piada do colégio? Não tenho idéia de como andei os poucos metros no cimento áspero que separava a borda da piscina com a ridícula imitação de mármore. Mais um passo.
Tchbum! Dentro da piscina.
Uma coisa legal dessa escola é o sistema de aquecimento da piscina, no verão a água fica fresca, quase gelada, e no inverno ela fica tão quentinha que não dá nem vontade de sair de dentro.
Um mergulho e algumas braçadas e eu já estou no meio da muvuca da turma.
O Ted distribuía pequenas pranchas de isopor que já viram dias melhores, a minha estava cheia de buracos. Eu teria sorte se eu terminasse a aula com ela inteira.
Pelo visto hoje iríamos ter exercícios para as pernas. Estranho, normalmente exercitávamos mais as pernas do que os braços  acredito que a cópia do Ted original gosta de ver as nossas bundas adolescentes agitando a água.
— Vamos lá, quero todas se mexendo!
Não tem nada mais frustrante do que um professor metido a galã que fica batendo palmas enquanto um bando de garotas adolescentes fica com a cara dentro d’água batendo as pernas. Realmente ninguém merece passar por isso. Se pelo menos não fosse obrigatório a porcaria da aula.
— Merda! Porcaria, porcaria, porcaria! – A droga da prancha quebrou, eu sabia que isso ia acontecer.
— Olha o palavreado Thompson!
— Er, desculpe Ted, mas a prancha quebrou. – Pateticamente eu levantei os pedaços do que antes era uma prancha de isopor, em péssimo estado, mas era.
— Que ótimo Thompson. Não tem outra prancha. Se não queria fazer o exercício por que não ficou com a outra turma?
Era impressão minha ou eu estava sendo culpada por quebrar a porcaria daquele pedaço de isopor? Isso era realmente ridículo! Recebi o material em péssimo estado, já todo esculhambado e ainda a culpa era minha? Minha? Ora essa!
— Escute professor...
— Tadinha da sereia cloro, os equipamentos são da escola e não seu. Ops, como eu sou esquecida, ela não tem equipamento de natação por que ela não tem piscina em casa, não é pobretona? – Júlia Vasques, a deusa das águas resolveu destilar o veneno. Hoje era o dia! Ela não era a garota mais perfeita da escola, era a segunda mais perfeita. A diva do colégio é a Amanda. Loira, magérrima, simplesmente sem palavras, sem defeitos. É estranho, mas as divas são sempre loiras. Júlia é o oposto, sua pele bronzeada causa inveja a todas, inclusive a mim que nunca consigo manter o bronzeado, só as sardas, essas não me largam. Suas longas pestanas deixam ainda mais enigmáticos os seus grandes olhos verdes, não sei como ela faz pra que o cabelo escuro dela brilhe mais do que um cristal sobre a luz, adoraria saber como ela consegue isso. Já olhei como quem não quer nada os produtos que ela usa pros cabelos e pelo menos no meu não consegui aquele resultado não.
Ignorei a alfinetada da Júlia, o Ted não ia falar nada pra ela mesmo.
— Professor! Você me deu uma prancha cheia de buracos, que culpa eu tenho pela péssima qualidade dos equipamentos? – Falei mostrando os restos mortais do que outrora fora uma prancha de isopor a ser utilizada por todo o colégio nas aulas de natação.
Que ótimo Kyra, depois dessa vai ser um milagre você se safar de uma suspensão. Merda! Ele já tá bufando, ficou todo vermelho, é agora eu estou ferrada de vez.
— Mê dê essa prancha! Todos voltem ao exercício e sem conversa ou mando todos pra diretoria. Todos entenderam!
Uff! Essa eu não entendi. Tipo ele não vai se esgoelar, brigar, xingar? Tipo eu tenho razão? Parece que existe esperança pra humanidade afinal. Entreguei os restos mortais daquele pedaço de isopor e fiquei olhando ele sair batendo os pés no cimento áspero.
— Que ótimo esquisita, ferrou todo mundo! – Clara não estava me olhando como se eu fosse a pessoa mais querida do mundo. Aliás, praticamente a turma toda me olhava torto.
Que ótimo! Por que raios esse povo não me deixa em paz? Será que é muito difícil continuarem a me ignorar?
— Vá plantar batatas!
Por essa ela não esperava. Consegui deixá-la sem fala por um segundo, tempo mais que suficiente para que eu me afastasse e antes que ela começasse a bramir os impropérios que eu sabia que ela ia começar assim que se recuperasse do susto, tipo por uns dois segundos.
Aprendi muita coisa nesses tempos de ostracismo, uma delas é: surpreenda-os e caia fora, isso impede que eles comecem a falar o espanto por tê-los enfrentado os deixam mudos por preciosos segundos, tempo mais que suficiente para que eu esteja longe.
Eu não era uma exímia nadadora, mas sabia o suficiente para não precisar ficar com os iniciantes, porém não era tão boa para estar na equipe avançada, por isso sempre ficava com a turma do meio, a intermediária. Hoje depois de tudo isso eu só queria ficar sozinha. Infelizmente eu não tinha nenhuma desculpa justificável para ir embora. Nenhuma desculpa que me livrasse daquela próxima uma hora de aula.
A grande piscina é compartilhada, de um lado a equipe de ouro da natação do colégio. Do outro lado os normais que tem de pagar os maiores micos na aula e no fundo a equipe de nado sincronizado que tinham de dividir o espaço com a turma de salto nas terças e quintas, não que tivessem alguma expressão, eles bem que tentavam pena os resultados não serem lá essas coisas. E no meio uma raia vazia, era o divisor da piscina, a área onde ninguém ficava. Tipo uma área neutra de segurança, assim se evitava que um iniciante desse uma pernada sem querer em um dos atletas de ouro.
Eu dei as costas à Clara e nadei até essa área vazia, hoje ela seria só minha. Comecei a nadar furiosamente, precisava canalizar a minha ira de alguma forma. Sim nadar. Gastar toda essa raiva em braçadas vigorosas, talvez a insanidade tenha pegado no meu pé de vez, mas também a minha vida não é o que se possa chamar de normal. Com irmãos que adorariam que eu sumisse uma mãe cuja insensibilidade têm tornado a minha vida um pouco mais difícil além do necessário.
Mais uma volta agora, o meu peito está começando a arder devido ao esforço.
Braçada, braçada, respira, braçada, braçada, braçada, respira.
Droga, eu já estou exausta.
Respira, respira, mergulhe, faz a volta.
O que será que eu tenho de fazer pra todos me deixarem em paz por sei lá, pelo menos um dia? A verdade é que eu queria que todos se esquecessem de mim pra sempre, mas isso seria pedir demais então que tal uma semana? Um final de semana? Pelo menos um dia que seja.
Respire!
Só quero não ver ninguém, não escutar nenhum comentário. É acho que só mudando de cidade mesmo, mais dois anos e meio e se eu tiver sorte de conseguir uma bolsa vou pra alguma universidade bem longe daqui.
Respire, respire, mergulhe, vire.
Do jeito que eu tenho sorte, nenhuma faculdade vai me aceitar, aí só me resta trabalhar em algum café, usando aquelas roupas ridículas. Bom se for pra sair de Austral acho que vale a pena.
Respire, mergulhe, vire.

— Ei aquela ali deve estar querendo entrar pro time. Tá nadando como uma doida há um tempão. – TJ o segundo mais rápido da equipe apontou pra piscina enquanto amarrava o tênis.
— Muito tempo? – Amon o capitão do time de natação franziu a testa preocupado.
— Ei Amon não precisa fazer essa cara tá! Ela já tava aí quando eu cheguei e pelo visto não vai sair tão cedo daí de dentro. – TJ passou a alça da bolsa no ombro e saiu.
— Aonde você vai?
— O treino acabou, eu vou pra casa. Você fecha tudo? É sempre o último a sair mesmo. – Ele deu os ombros indo para a saída.
— Tá. Vou esperar a garota terminar o treino. – Ele sentou aguardando a estranha na piscina terminar o treino.
— Boa sorte então, por que eu vou embora. – TJ saiu o deixando a sós com a garota.

A dor no peito começou a incomodar, já estava começando a ficar difícil respirar.
Respire, mergulhe, vire.
Acho que eu deveria pensar seriamente em mudar de esporte, quem sabe alguma luta marcial, ou atletismo? Acho que atletismo não, eu ia ficar com as pernas musculosas, alguns garotos gostam, mas como elas ficariam depois que eu parasse de praticar? Será que elas voltariam a ser o que são hoje ou não? Será que a escola ensina boxe? É bem mais útil se eu precisar me defender em uma briga, além de poder socar aquele saco de areia, não deixa de ser uma boa terapia. Será que a mãe me deixaria comprar um saco daqueles?
Respire, mergulhe, vire.
Credo, já estou toda dolorida.
Respire, braçada, braçada, respira.
Não sei se agüento muito mais disso.
Respire, braçada, braçada, respira.
Vamos lá Kyra, deixa de ser mole e termina essa volta, saia da piscina de cabeça erguida, se manda pro vestiário assim não precisa encarar nenhuma daquelas chatas.
Braçada, braçada.
Pronto!
— Uê... cadê... todo... mundo? – A piscina estava vazia. Não havia ninguém. Todos já foram embora. A equipe de ouro, o pessoal dos saltos, a minha turma de natação. Ninguém. O meu fôlego já era, acho que vou precisar de uns minutos pra conseguir encontrar ele de novo, e então sair daqui, já que ninguém teve a boa vontade de me avisar que a aula já havia terminado.
— Ei moça, você está bem? – Amon se aproximou da borda da piscina.
Oh-meu-Deus!
Eu devo ter morrido e fui pro céu. Será que o mundo acabou? Ou eu fui transportada pra alguma dimensão paralela? Com certeza eu fui transportada, eu me sentia muito viva pra estar morta. Belisquei a mim mesma só pra me certificar de que não estava sonhando, essa era a única explicação possível para que o próprio Netuno, ou melhor, Amon, o cara mais lindo do colégio (ops, o segundo mais lindo de acordo com a minha lista pessoal é claro), estar me perguntando se eu estou bem? Claro que pode ser uma daquelas pegadinhas da TV, mas se fosse não seria o Aston Crusher que estaria me fazendo essa pergunta? Pensando bem se fosse ele, ele não estaria me perguntando se eu estou bem, estaria mais pra fazer alguma brincadeira com um péssimo gosto, por via das dúvidas dei uma olhada com quem não quer nada em volta pra ver se tinha alguma câmera escondida, o seguro morreu de velho né?
Mas afinal por que ele estava me olhando com aquela cara de preocupado, claro que não ajudava em nada eu continuar sem fôlego.
— Sim... estou... onde... estão... todos?  Devo estar parecendo uma idiota perguntando isso. Tenho certeza de que devo estar parecendo uma idiota perguntando isso.
— Já foram há horas. Tem certeza de que está bem? – Ele estava inclinado sobre a borda da piscina.
Jesus-daí-me-forças. Basta eu levantar a mão e eu posso tocá-lo. Se acalme Kyra. Deixe de loucura. Concentre-se. Respire. Só se mantenha respirando.
Ele é tão lindo. Ai, ai.
— Acho que... exagerei.
Se acalme Kyra, ele só está querendo ir embora, é isso. Não fantasie sua louca!
— Você parece a beira de um ataque de fadiga muscular.
Aquele deus loiro das águas continua a me olhar preocupado. Tá certo eu sou a esquisita da escola, daí a um desconhecido se preocupar comigo, quanta diferença.
— Sem drama, eu tô bem.
Por que é que eu estava me desculpando tanto? Acho que é por que ele é tão gatinho. Se liga garota o cara só está sendo gentil, ele deve estar querendo ir embora é isso, e a esquisitona aqui tá ensebando ele. Pelo menos o fôlego já estava quase normalizado.
— Se me der dois minutos eu caio fora daqui.
— Sem pressa. Precisa de ajuda pra sair da piscina?
Ai que lindinho!
Ele continua com aquele olhar. Hora de se mexer Kyra, os seus dois minutos estão correndo. Vamos lá, respire fundo dê duas braçadas, alcance a escada, suba e pronto! Ele fica liberado.
Ainda bem que tem várias escadas ao longo da piscina.
Infelizmente descobri da pior forma que o Deus do colégio está certo. Os meus braços parecem pesar umas dez toneladas cada um, sem contar a dor nas pernas.
Benditas raias flutuantes! O cansaço bateu todo de uma vez, mal consigo me segurar.
— Er, será que você pode chamar alguém pra me ajudar? – Queria morrer só por falar isso. Só eu mesma pra pagar esse gorila na frente desse monumento.  Tomara que venha alguém logo. Abracei a raia com todas as forças que sobraram. Como eu fiquei tão cansada assim de repente? Eu estava assim tão fora de controle que não percebi os sinais de exaustão? Será que...
Tchbum!
O som de alguém mergulhando interrompeu o meu devaneio. O Amon foi rápido. Espere aí, por que o Amon está dentro da piscina? Onde está a pessoa que vai me ajudar? Será que ele entrou pra me fazer companhia? Mas por quê? Ele podia estar a caminho da casa dele agora.
— O que, o que...
— Vou te tirar daqui. – Ele começou a me rebocar até a escada, ele me suspendeu com uma mão.
— Mas e a pessoa pra me ajudar? – Perguntei. Eu devo ter regredido o meu estado mental, não estava falando coisa com coisa. Raciocinar nesse momento estava se mostrando impossível, não com o peito dele há, sei lá dois centímetros do meu rosto. Nunca fiquei tão perto de um garoto assim.
É realmente perturbador. Não perturbador é ser generosa, é inadmissível pensar tão próximo assim dele. Deus ele é tão lindo e cheira tão bem, é quente também.
Gentilmente ele me fez sentar em um banco.
— Realmente você não...
— Tudo bem, eu não podia deixar você lá.
Ai, ai... ele é tão gracinha!
Porque é que ele tinha de ficar me cortando? Eu já não estava pensando direito com ele tão perto e ainda ficava me interrompendo, ele vai acabar pensando que eu sou alguma débil mental.
Ele me estendeu a toalha dele. Humm tinha um cheiro bom.
— Obrigada.
Parece que eu estou em um filme de terror, a piscina estava quase toda no escuro, o silêncio é aterrorizante, só está faltando aparecer algum psicopata empunhando algum machado ensangüentado. Brr. Um calafrio percorreu o meu corpo e não foi de frio!
— Está com frio?
Como é possível ele continuar com aquele olhar? Será que ele não sabia que eu sou a esquisita da escola?
— Eu estou bem. Obrigada por me tirar da água. Você pode ir, vou pegar as minhas coisas e me mandar também. – Pronto! Agradeci, e dispensei o gatinho, se ele quiser eu lavo, passo e cozinho.
Kyra não pire!!!
Tá eu já o livrei de qualquer responsabilidade, não que eu não aprecie estar ao lado dele, quem não queria estar no meu lugar agora?
Todo o colégio!
É eu sei disso. Pelo menos a parte feminina do colégio. Seja realista Kyra, ele é o Amon, a maior estrela da equipe de natação. Não duvido que ele já tenha o passaporte carimbado pras próximas olimpíadas, se brincar ele ganha do Phelps facinho, facinho. Ninguém nada mais rápido do que ele. O rapaz parece ter motor nos pés.
Tentei me levantar e desabei no banco novamente. As minhas pernas não conseguiram me sustentar. Cristo como é que eu ia embora agora? Se nem me levantar do banco eu consigo.
— Eu vou pegar as suas coisas.
Ele simplesmente levantou e saiu andando, nem me deu tempo de falar alguma coisa. Que droga como é que eu ia pra casa agora? Pelo jeito andar os seis quilômetros até em casa está fora de cogitação. Será que o Amon poderia me dar uma carona, pelo menos parte do caminho. O restante eu ia me arrastando se preciso fosse.
Droga, droga, droga.
Vai ser um saco agüentar a aporrinhação em casa.
— Espero ter pego tudo. – Ele já está devidamente vestido. Que pena. Não estou reclamando de ser obrigada a ficar olhando para o peito dele.
Se contenha Kyra! Se controle sua loka.
Acho que ele está com pressa pra ir e eu aqui atrapalhando/fantasiando/sonhando. Acho que eu vou ter de me arrastar pelos seis quilômetros mesmo.
— Será que você consegue se vestir sozinha? – Ele parece constrangido de pé na minha frente segurando o meu jeans e camiseta em uma mão e as minhas botas na outra. Será que ele pensa que eu vou tirar o maiô na frente dele?
Sem chance baby!
— Claro! – Fala sério, sair da piscina era complicado agora me vestir. Uff. Fichinha!
Ledo engano. Seria bem fácil, automático mesmo, se os meus músculos cooperassem. Os benditos estão completamente duros. Nem consigo erguer o braço.
Antes mesmo que eu pudesse pensar em como fazer a ação automática de como me vestir ter uma resposta satisfatória em meu corpo pesado, um par de mãos começou a fazer isso por mim. O meu rosto deve ter ficado roxo de vergonha, não consegui falar nada, nem olhar pra ele.
— Vamos? – Ele passou a alça da minha mochila pelo ombro e me ajudou a levantar. Juro por Deus que eu não estou fazendo tipo, mas os meus pés não estão cooperando e pra piorar estou usando aquelas botas enormes. Acho que isso acabou com o que restava de paciência dele, por que ele me pegou no colo. Fiquei muda! Estou muda! O que eu vou falar? Pense em algo sensato pra dizer.  Sem chance, perdi completamente a fala.
O vento fora do ginásio está frio, carregado, pesado, logo a chuva cairia. Parecia que eu ainda estava dentro da piscina, o desespero queria me afundar, me sufocando, me engolfando e ele crescia a medida em que ele me carregava pro estacionamento. Eu preciso fazer algo e rápido, o problema é que eu não tenho idéia de como eu vou conseguir me arrastar até em casa, não sem ajuda. Bom eu poderia tentar o Cris, ele têm carro. Acho meio difícil ele querer voltar pra escola só pra me buscar, mesmo com ameaças. Quem tem irmãos como os meus pra que precisa de inimigos?
— Olha só, se você me descer eu vou pra casa, não esquenta comigo.
— Garota você não está em condições de ficar em pé sem ajuda, muito menos dirigir. Eu a levo pra casa.
Porcaria! O pior é que ele está certo. Como é que eu vou pra casa se não consigo dar um passo sequer sozinha? Eu vasculhava a minha mente atrás de algo, alguma saída pra essa situação ridícula que a minha falta de bom senso me meteu.
Peraê, ele falou em dirigir? Quem foi que disse que eu tenho um carro?
Oh-Meu-Deus!
Ele caminhava em direção a uma Ferrari. A minha boca fechou e eu esqueci todos os argumentos que ia dizer, até mesmo explicar que eu não tenho um carro. É porque é difícil ele estar dirigindo outro carro, o estacionamento está vazio.
Ele têm uma Ferrari? Será que ele trocou a pick-up Dodge dele? Isso é algum episódio do Além da Imaginação? Como um garoto de Austral pode ter uma Ferrari? Era alguma piada dos céus?
Ele abriu a porta.
É sério agora, é uma Ferrari mesmo! Juro! Uma Ferrari preta. Não sou o tipo de garota que se impressiona com carros, não sou o tipo de garota como a Lilith, mas ele têm uma Ferrari. Será um carro fake? Tá na moda tudo ser fake hoje em dia, ou vai ver é um daqueles carros tunados. Tipo será que ele remodelou o carro até se parecer com uma Ferrari? Apesar de que eu estou vendo um monte de símbolos do cavalinho.
Será que eu estou babando no banco? Droga será que têm algum espelho pra que eu veja se estou com cara de demente e babando?
— Algum problema? Está sentindo alguma dor?
É, devo estar com cara de demente, senão por que ele me perguntaria se eu estou sentindo alguma dor?
— Esse carro é um Ferrari? – Pronto falei.
— É uma Ferrari. – Ele riu. Afundei no banco querendo morrer, agora literalmente.
— Bateram no meu semana passada e agora a minha pick-up está no conserto. Esse é do meu primo. Ele é modelo, era esse ou o do meu pai e você não ia querer andar no do meu pai. – Ele riu novamente.
Ai que lindinho, ele tá se explicando.
Eu movi a cabeça me afundando ainda mais no banco.
— Onde mora?
— Como?
Ainda estou sobre o efeito do susto de estar andando sabe-se lá quanto custa esse carro. Será que excesso de exercício pode afetar o cérebro? Porque eu não estou conseguindo emitir uma resposta simples? A minha esquisitice deve ter atingido o grau crônico agora.
— A sua casa, onde é?
Certo eu sou uma pateta completa. Um cara lindo, maravilhoso e gentil me salva da piscina, me dá uma carona em um carrão e tudo o que eu conseguia fazer era olhar pra ele completamente abobalhada e pra completar de boca aberta. Deus que eu não esteja babando, por que aí eu seria um caso de internação. As árvores pela janela pareciam um borrão, a estrada do convento de três quilômetros que dava acesso à escola já estava no fim.
Há uns trinta anos atrás uma tempestade destruiu o telhado da escola no centro de Austral, e pra tristeza da gurizada na época eles foram transferidos para o antigo convento da cidade, – é convento, esquisito né? Ele estava abandonado há mais de cem anos, desde que houvera uns desaparecimentos que nunca foi solucionado. Então os prédios foram adaptados pra vida estudantil e desde então está sendo usado como escola secundária de Austral. Bom pelo menos a fama de assombrada era cascata.
Já estávamos na rodovia.
— Você pode me deixar na República esquina com Cerejeiras. – As árvores passando rápido estavam me deixando zonza. Passei a examinar as minhas unhas que por sinal estão terríveis.
— Você mora ali? – Amon perguntou. Ele dirige tão rápido quanto nada. Faz falta uma lixa de unha, pelo menos ia ter o que fazer já que olhar pela janela estava fora de cogitação.
— Perto.
O silêncio começava a ficar esquisito, já dava pra ver a cidade, claro que eu não olhava muito não queria passar mal no carro de quem tão gentil me deu uma carona.
— Você pode me deixar na esquina, de lá eu vou pra casa.
Pelo canto do olho eu podia ver a impaciência começando a aumentar a medida que ele pisava no acelerador fazendo com que a estrada passasse cada vez mais rápido. Claro que ele caiu na real e percebeu que deu carona para a esquisita de plantão. Amanhã a escola seria um inferno, até fingiria estar doente se isso me livrasse de ter de ficar em casa, mas enfrentar o dia inteiro os olhares da minha mãe mais as brigas que ela tinha com o pai. Sem chance. Mesmo com o mundo caindo sobre a minha cabeça era melhor do que ficar em casa, ou era capaz de acabar realmente doente.
— Eu até a deixaria se você estivesse em condições de andar.
Depois dessa eu queria desaparecer.
— Ser visto perto de mim vai acabar com a sua reputação. – Depois dessa ele ia parar o carro e me chutar pra fora, fechei o olho esperando a freada. Uma risada baixa aos poucos se transformou em gargalhada, a velocidade foi diminuindo. É ele estava rindo. Será que eu seria chutada antes ou depois que o carro parasse?
— Garota você é engraçada.
Oh-Oh. O lindinho no volante realmente não tinha idéia de quem estava sentada ao lado dele.
— Escute, eu estou muito agradecida por tudo, é óbvio que eu ainda estaria dentro daquela piscina se não fosse por você. – Precisava de fôlego, e olhar pra ele não estava ajudando em nada. Ele olhava como se eu fosse demente. Fale logo Kyra e despache o gatinho, ele vai te agradecer, claro que não pessoalmente, em algum lugar da mente dele ele vai te agradecer.
— Sou a esquisita da escola, ninguém chega perto. Então para a droga do carro na esquina e vai pra sua casa. Há essa hora não vai ter ninguém por lá. – Comecei a respirar mais lentamente, tudo pra evitar que as lágrimas começassem a jorrar, por que se começasse ia ser difícil parar. A velocidade agora estava dentro dos limites, eu já via o cruzamento onde ia descer.
— Onde afinal você mora, garota estranha? Ele perguntou com uma voz baixa e suave.
— Rua das Acácias dois-cinco-dois. – Droga, droga! Como é que ele fez isso? Ele Pá perguntou e eu Tum respondi.
— E onde é que fica isso?
Mais uma quadra e já estaria no cruzamento. Era impressão minha ou ele estava dirigindo cada vez mais devagar?
— Como você fez isso?
— Fiz o que?
Ele estava se fazendo de desentendido ou o quê? Agora o carro estava quase parando.
— Como me fez dizer o meu endereço? – Eu tava começando a me irritar. Será que era tão difícil parar a porcaria do carro pra que eu descesse?
— Não fiz nada, só perguntei.
Sei, me engana que eu gosto.
— Você é estranho.
— Hey, achei que era você que era a estranha aqui. – Ele sorria divertido, como se eu tivesse deixado passar alguma piada.
— Não, eu sou a esquisita, você é estranho. E você não me respondeu ainda.
— Realmente não sei o que você quer dizer. – Ele me olhou daquele jeito de quem não está entendendo o que eu estou dizendo. Pelo visto eu não ia conseguir arrancar a resposta dele. Deixei passar. Era obrigada, não ia criar uma cena dentro do carro dele, ia?
— Vire na próxima rua a direita.
Eu não conseguia compreender como eu respondi tão rápido, o que havia acontecido com o-pode-parar-na-esquina-que-eu-desço? Será que o rosto de anjo dele me confundiu tanto assim que eu acabei respondendo sem pensar. Não, era o cansaço mesmo, eu estava previsível. Ele só esperou o momento certo e pronto. Como eu queria que não tivesse ninguém em casa.
— Qual é o número mesmo?
— Dois-cinco-dois, é a casa azul no meio da quadra.
Já que ele quis bancar o bom samaritano, que eu cooperasse então. Abri a porta assim que o carro parou, não queria incomodar mais do que já tinha feito.
— Obrigada. – Agradeci sinceramente. Reconheço infelizmente que seria trabalhoso me arrastar até em casa, as minhas pernas se recusavam a cooperar. Respirei fundo obrigando que elas obedecessem, afinal de contas, quem é que estava no comando, eu ou elas? Eu é claro! – Não, parece que são elas.
— Eu te ajudo. – Ele falou ao sair do carro.
Esse cara tem síndrome do príncipe encantado. Será que ele desconhece que as pessoas podem andar? Claro que antes mesmo que eu abrisse a boca lá estou eu nos braços dele  novamente!
— Eu posso andar, sabia?
— Claro que pode, só não agora. Será que consegue abrir a porta? – Ele disse ao se aproximar da porta fechada.
Eu travei os dentes, senão...
— Claro.
Tá certo não é tão fácil assim raciocinar estando tão perto assim dele, bom também ter os músculos em frangalhos é uma boa desculpa para querer brigar com a porta.
A casa estava em silêncio, era muito estanho, normalmente naquele horário só o que se escutava era uma gritaria só. Era a Lilith tendo seus ataques de piti, o Cris berrando com todos os pombos do mundo por conta do precioso carro dele, se pelo menos fosse um carro decente, mas era só um chevy antigo, mais parecia o carro de um cafetão.
— Onde é o seu quarto?
Um arrepio correu a minha espinha. Como assim onde era o meu quarto?
— Pode deixar que agora eu assumo. Me desce por favor.
Agora chega de deixar ele bancar o bonzinho, eu já estava em casa então ele podia parar com essa de ser útil.
— Você precisa de um banho, está gelada. Tem banheira no seu banheiro?
Banho? Era só o que me faltava agora. Pra que banheira? Se ele estava pensando em fazer uma festinha comigo, pode ir tirando o cavalinho da chuva por que eu posso estar com os músculos ferrados, mas não vou deixar nenhum espertinho tirar proveito disso.
Ele começou a subir a escada.
— Não me escutou? Quer me descer. Por favor?
A minha gratidão com ele já estava no limite.
Uff ele tá com aquele olhar “o que está havendo?” Ele podia ter me enrolado no carro, mas agora eu estava no meu ambiente. E aqui eu não seria tão manipulável, pelo menos não sem brigar.
— Tudo bem, eu acho que exagerei, mas você precisa de um banho quente e massagem pra soltar os músculos ou amanhã você não vai conseguir se mover, por que vai ficar toda travada. Acredite, eu sei do que estou falando. Só me diz onde é o seu quarto que eu te deixo lá.
Bom ele parece meio sincero, claro que isso pode ser só um ardil, afinal eu havia permitido que ele ficasse tão próximo, não foi?
— Pode me deixar no sofá.
Se ele era determinado eu era teimosa, vamos ver quem ganha essa.
— Não vejo o porque de você subir essa escada sem necessidade, eu te deixo na porta, não se preocupe.
Meleca, que cara chato!
— Eu não tenho um quarto, eu durmo na sala. – Pronto falei.
Ele parou no meio da escada e me olhou sério, ou melhor, ele franziu a testa, acho que ele não gostou da novidade. Nunca fiquei tão feliz por dormir na sala. Vai que ele era algum maluco. Melhor não arriscar, não quando eu estava tão indefesa.
— É sério isso?
— Seríssimo. Agora quer fazer o favor de me por no chão.
Acho que ele não ficou muito lá feliz com a notícia, pelo menos fez o que eu pedi. Desceu os poucos degraus e me colocou no sofá.
— Esse sofá não me parece muito confortável. – Ele franziu a testa perfeita dele enquanto analisava criticamente o sofá de casa.
Droga, droga. Ele tinha de sentar justo no caroço? Ai que mico, não que gorila.
— Onde está a sua família?
O meu coração estava fazendo eco na casa. Nunca vi esse lugar tão silencioso. Será que eu realmente estava em uma dimensão paralela? Devia ser. Talvez eu tenha nadado tanto que acabei em uma dimensão paralela ou em um episódio de Além da Imaginação? Acho que dei os ombros em resposta. Eu estava quase triste por ele ter se sentado no pior lugar do sofá, eu recostei, estava tão bom ali. Só havia paz.
Acho que eu cochilei, o silêncio nunca foi tão bom como agora.
— Isso é ridículo! Não pode ficar aqui.
— Ei. – Abri os olhos e ele está furioso. Fui suspendida e estava sendo carregada de novo.
— O que você pensa que está fazendo?
Amon irrompeu porta afora. Ele parecia bem nervoso. Não precisou de esforço algum pra me colocar novamente dentro do carro dele. Por um segundo eu fiquei sem ação, mas não tempo suficiente pra que ele arrancasse com o carro, antes que ele entrasse eu já estava abrindo a porta novamente. O cara devia ser completamente maluco, eu é que não ia pagar pra ver.
— Você vai pra minha casa! – Ele falou como um fato consumado.
— Há não vou não. Eu já estou em casa. Já vez a sua boa ação Netuno, agora pode ir.
A briga ia ser feia, não que eu tivesse forças pra brigar com ele, mas que eu não ia deixar essa passar há eu não ia.
— Escuta garota, estou esperando alguém da sua família aparecer há horas, estou cansado, com fome e você está péssima. Se a sua família não se importa se você está viva ou não eu me importo. Droga. Eu esqueci. — Ele socou o volante. Isso agora estava me assustando. — Vai precisar de roupas secas, pode me dizer, por favor onde eu posso pegar algumas pra você, por que eu realmente estou com pressa. Tenho um monte de lição pra fazer e ainda tenho de treinar.
— Segunda porta a direita, armário azul. – Só escutei a porta abrindo e fechando. Droga ele fez de novo. Será possível que eu não podia simplesmente ser eu mesma, a invisível de sempre? Devia ser os olhos dele, tão tristes. Tá eu devo ter pirado de vez. Eu é que não ia reclamar dessa realidade alternativa. Se aqui eu tiver uma vida um pouco mais normal, então não vou fazer drama. – Ele saiu com passadas longas e rápidas.

— Pronto!
Nem me dei ao trabalho de perguntar que roupas ele pegou, só vi que ele jogou uma mochila velha minha atrás do banco. Rápido como se ainda estivesse dentro da piscina ele saiu, e nem cantou os pneus, e mais rápido ainda era a forma como ele estava dirigindo, eu fechei os olhos senão eu vomitava, eu estava meio zonza, e aquela velocidade toda estava começando a me deixar enjoada.
Respira Kyra, respira. Não vai querer vomitar no carro dele, vai?
— Você está bem?
Por que ele não parava de me perguntar isso? Como é que ele quer que eu esteja bem se nem me mexer eu podia? E pra completar ele me carregava pra todo canto, nem na minha casa eu pude ficar. Acho que eu devia ter gritado. Claro que eu duvido que algum vizinho me ajudasse. Era tantos gritos lá em casa que era capaz de eu ser morta e nenhum deles dar a menor bola pra isso. Diacho de vida.
— Você está pálida. Tá com enjôo?
— Eu estou bem. Só queria saber do porque você não me deixou em casa. Agora estaria livre de mim.
Falar estava ficando difícil. O enjôo estava piorando. Mantenha os olhos fechados. Mantenha os olhos fechados.
— Eu já lhe disse. Você não está bem. Vou cuidar de você, pelo menos até que você possa fazer isso sozinha.
Nossa agora eu estava enjoada.
— Coloque a cabeça por entre as pernas, isso pode ajudar.
Se eu estivesse no carro do Cris ele já teria tido um filho. Amon soltou o meu cinto e desceu enquanto eu abria a porta e escorregava pra fora, já tínhamos chegado na garagem dele? Eu não vi nada do caminho o enjôo não permitiu.
— Você fez as curvas muito rápido.
Não sei como eu ainda conseguia falar. As mãos dele em minha testa estavam frias ou seria o piso?
— Você está pior do que eu pensei.
Claro que ele não precisava me dizer isso, eu tinha plena consciência de que estava péssima, e ainda por cima quase vomitei no carro dele. Acho que eu estava engatinhando no chão da garagem dele e então tudo o que senti foi que flutuava e mais nada. O nada é bom, é calmo, reconfortante.

— Humm, pelo silêncio ninguém acordou ainda. Ui como estou moída, parece que eu fui colocada dentro do processador, agora eu sei como aqueles pobres legumes se sentem.
Tentei me espreguiçar e a dor voltou com tudo. Rolei na cama.
Rolei na cama???
Abri o olho, a minha mão estava sobre o lençol frio.
Lençois azuis? Cama de casal?
Caraca, onde é que eu estou.
Tá ferrada Kyra!!!! Dessa vez você se superou.
Pense Kyra, o que foi que você fez?
Morta eu não estou, senão estaria em um caixão ou no necrotério, e definitivamente uma cama desse tamanho não se enquadra nessa categoria. Tudo o que eu me lembro foi que o Amon me deu uma carona, me arrastou de casa, aí eu comecei a passar mal e depois?
Branco total!
— Porcaria, porcaria! Como é que eu estou de pijama? E a pergunta de um milhão, de quem é esse pijama? – OK Kyra vamos as possibilidades.
Possibilidade 1: Você ficou bêbada ontem e está de ressaca! Não acho que eu esteja de ressaca, moída sim, mas definitivamente não de ressaca. Não que eu saiba como é estar de ressaca, tenho certeza de que não é como eu estou agora, a não ser que seja uma mistura de drogas e álcool. Isso me leva para a próxima possibilidade.
Possibilidade 2: Você foi drogada. Ou melhor bêbada e drogada, com a minha sorte essa é a possibilidade mais certeira. Peraê, isso é ilógico, eu não me lembro de ter bebido nada, muito menos comido. Será que estou com amnésia? Será que de alguma forma essa informação foi deletada do meu cérebro esquisito? É podem ter me drogado já que eu não tenho a mínima idéia de como vim parar nesse quarto.
Possibilidade 3: Raptada? Sem chance! Sou pobre e esquisita.
Voltemos a possibilidade dois. Se eu fui drogada, isso pode explicar o porquê de eu não me lembrar, não pode? Eu passei mal no carro do primo do Amon, será que eu estou na casa dele? Mas por que ele me deixaria ficar aqui? Não sou amiga dele nem nada, isso se esse quarto for realmente dele.
— Ai Jesuis como dói. Ei eu estou de maiô ainda. Ufa menos mal. – Me arrastei pra fora da cama, a minha mochila velha estava em cima de uma cadeira. Os meus pés afundaram em algo macio, olhei rapidamente e com susto vi um tapete fofo.
— Acalme-se Kyra, é só o tapete, o que pensou?
Uma estante cobria todo o lado direito do quarto, uma prancha de surf estava dependurada atrás da porta. Um pôster de algum surfista que eu não faço-a-menor-idéia-de-quem-seja estava colado na parede. — Definitivamente Kyra, esse quarto não é de ninguém que você conheça, o dono dele tem bom gosto. – O laptop piscava na mesa em frente.
— Uau, esse som é bem caro! – O aparelho estava do outro lado da cama, havia CD’s espalhados em pilhas por todos os cantos. Me arrastei até a mochila. Seja lá onde eu estivesse era melhor que eu esteja devidamente vestida quando encontrasse o dono de tudo isso.

Um longo corredor em silêncio me recebeu quando saí do quarto. Estou me sentindo meio como se estivesse invadindo. Ok, ok, não deixa de ter razão, afinal eu não acordei em um lugar estranho? Só espero não ter feito nada que eu me arrependa depois.
O barulho de algo sendo triturado captou a minha atenção atraindo-me como um imã, direto pra cozinha. Um loiro de costas para a porta, descalço e de bermudas colocava algo dentro de um liquidificador.
Pelo menos não parecia ser mãos e pés, menos mal.
— Bom dia. – Falei ao entrar na cozinha, a dele é enorme, daquelas do tipo que saem na revista Cozinha & Co. Linda e cara.
Amon se virou com um sorriso-arrasa-quarteirão. Noossa é fácil gostar de alguém com um sorriso desses.
Foco Kyra, focalize, não pire na batatinha!!!
— Bom dia dorminhoca. Como está se sentindo hoje? Trouxe o seu dever de casa. Pensei em te acordar. Está com fome? – Ele ligou o liquidificador e a mistura começou a ficar meio verde. O meu estômago deu uma resmungada, tomara que ele não tenha escutado.
— Bem, acho.
Sem graça, o mais sem graça que alguém pode se sentir em uma situação como essa eu cruzei a inacreditável cozinha e me aproximei até uns bancos em frente ao balcão que o Amon estava e, antes que as minhas pernas cedessem à visão despreocupada do filho mais lindo do senhor do mar, eu pulei pra cima do banco. Ele se virou sorrindo e colocou um copo cheio de uma mistura verde na minha frente.
Prendi a respiração.
Deus como alguém pode ser tão lindo assim?
Eu segurei o copo e a minha mão começou a tremer, tive de colocar o copo na bancada antes que ele caísse da minha mão. — Oh-Oh isso não está nada bem. — Pensei.
Amon se virou e colocou dois canudos no copo em minha frente.
— Desculpe esqueci.
A minha garganta tinha um nó, eu não conseguia falar nada. Como podia uma pessoa completamente estranha agir assim? Dei um sorrisinho amarelo, o nó não ia deixar eu falar nada, isso eu sabia, se eu abrisse a boca os meus olhos iam começar a lacrimejar, um chororô só.
Tentei engolir o bolo na minha garganta e me inclinei pra sugar aquela mistura verde do Amon. Tinha um cheiro não muito agradável. Acho que eu estou mais fraca do que pensei, por que não conseguia sugar nada.
— Ops, deve estar muito grosso. Ele pegou o meu copo e despejou dentro do liquidificador novamente, acrescentou algo e bateu. Seja o que for que ele colocou dentro eu já ia descobrir. Ele colocou novamente o copo na minha frente, sem esquecer o canudo dessa vez.
— Pronto! Agora você consegue beber.
O sorriso dele é lindo, pena eu preferir os morenos. Por que a vida não podia ser justa pelo menos uma vez? Não podia ser outra pessoa no lugar dele?
Não pense nisso!
Comecei a sugar seja-lá-o-que-for-que-tenha-no-copo.
Argh o gosto é pior que o cheiro. Tive vontade de apertar o nariz se isso me impedisse de sentir aquele gosto medonho.
— Não gostou?
Ele tinha um bigode verde.
— Hum, é diferente.
Como eu podia dizer a ele que havia detestado? Nunca ninguém foi tão legal comigo.
— Seria bom se você tomasse esse, têm muita proteína e vitaminas que você precisa, mas vou fazer outro pra você. Ele tirou o canudo e bebeu tudo enquanto eu prendia a respiração.
Calmamente ele pegou outro copo de liquidificador e colocou algo que estava dentro de um pote, acho que ele colocou leite também, bateu tudo e colocou outro copo na minha frente. Esse agora tinha uma cor meio laranja. Ele pegou o copo do liquidificador com a mistura verde e bebeu direto sem nem ao menos colocar no copo.
O cheiro parecia bom agora. Peguei o canudo e bebi.
Humm estava muito bom. Terminei o copo tão rápido que nem percebi o quanto estava faminta. Ele encheu novamente o copo, bebi tudo antes mesmo dele colocar o copo no liquidificador novamente, ele parecia satisfeito com o meu estado esganado. Ele encheu novamente, dessa vez bebi normalmente, já estava quase satisfeita.
— Obrigada pela vitamina, está bom.
O único barulho na cozinha era o zumbido da geladeira e o que eu fazia pra sugar a mistura que o Amon tão gentilmente fez e que eu não tinha a coragem suficiente de perguntar o que era, não sou tão corajosa assim pra saber o que tinha naquele copo. Vai que ele fala que colocou algo esquisito ali dentro, melhor ficar quieta.
Eu estava deliberadamente evitando olhar pra ele, assim eu ganhava tempo pra pensar em algo pra dizer, minha mente estava um vazio só. Vazia e pesada.
— Você disse que pegou o meu dever de casa. – Manter o terreno neutro me parece uma boa idéia.
— Sim, você tem um trabalho pra entregar, eu dei uma pesquisada pra você, só vai precisar escrever.
Uau. Ele fez o meu dever de casa?
— Apesar de que eu falei com o seu professor e disse a ele que você está doente, acho que se não puder ir na aula não vai ter problema.
Poxa.
— Você está sendo muito legal com uma desconhecida. Porque?
Ele deu os ombros.
Eu não ia deixar passar essa não, afinal eu estava na casa dele, sabe-se lá quanto tempo.
— Onde estão os seus pais?
— Viajando. Eles voltam na semana que vem.
Que ótimo! Eu estou sabe-se lá onde com o filho do Netuno e sozinha.
— Posso usar o seu telefone? Preciso avisar onde estou, e pedir pra alguém vir me buscar.
Meus olhos começaram a ficar tão pesados. Tentei combater o sono.
— Eu avisei o seu primo Lance, ontem na escola.
— Ontem? Quanto tempo eu apaguei?
Priii!
Porque é que ele estava evitando o meu olhar? O meu alarme começou a soar. As palmas da minha mão começaram a ficar pegajosas de suor. O que ele não estava me contando afinal?
— Você dormiu por dois dias. Já estava ficando preocupado.
Uff! Dois dias? Ainda bem que eu já estava sentada, ou teria caído no chão.
Dois dias.
Se eu estou há dois dias aqui e o Lance sabe, não que ele vá correndo avisar alguém lá em casa, ele definitivamente não morre de amores pelos meus irmãos. Claro que isso é diretamente proporcional a eles quererem fazer parte do grupo popular, coisa que eu acho babaquice, vai ver é por isso que a gente se dá, eu não tenho aspirações de ser mais uma popular.
— Dois dias? – Não tive como evitar da minha voz sair em um crescente.
— É você ficou mal mesmo.
Ele terminou de beber toda a gororoba verde e ainda bebeu o que sobrou da minha. Estou seriamente dividida entre entrar em pânico irracional e ter um surto agora.
— Dois dias...
Como eu já estou melhor, essa era a minha deixa pra ir embora. Era bem provável ninguém lá em casa tivesse a mínima noção de onde eu estava. Isso se repararam que eu sumi.
— Posso ou não usar o seu telefone?
— Claro. – Ele me passou o aparelho sem fio.
As minhas mãos tremiam, eu deixei o aparelho sobre o balcão enquanto digitava os números de casa.
Um toque, dois, cinco... nada.
Tentei novamente.
— Porcaria! – Tentei pela terceira vez e nada. Que ótimo! Será que não tem ninguém em casa ou ficaram com preguiça de atender?
Amon me olhava com um ar de pena, será que ele tentou ligar em casa? Não, ele não tem o meu número. Será que o Lance falou algo? Estou começando a sentir uma dorzinha de cabeça.
— Ninguém atende na minha casa. – Resmunguei depois de mais uma tentativa, ele não falou nada, começou a lavar a louça suja como se aquilo fosse a coisa mais interessante do mundo.
Priii!
O meu alerta começou a berrar — de novo.
— O meu primo disse algo? – Eu coloquei as mãos no colo, a minha palma deixou uma mancha de suor em cima da mesa. — Sobre eu estar aqui? – Completei em um fio de voz. Se antes eu era a estranha agora eu sou o quê? Depois de dois dias na casa de um estranho. Isso tem de ser um pesadelo! Acorda Kyra, acorda!
Ele só deu os ombros. Isso era mal.
Se eu apaguei por dois dias então hoje é sexta-feira ou sábado?
— Hoje é sexta ou sábado? – Perguntei já com medo da resposta.
— Sábado de manhã. – Ele tá esquisito de novo. Isso é mal.
— Por que... por que você só falou com o Lance ontem e não na quinta-feira?
As costas dele ficaram rígidas, ele parou de lavar o copo enquanto decidia o que responder. Comecei a contar o tempo. Passou três minutos inteiros antes que ele falasse algo.
— Primeiro eu tentei por horas o telefone da sua casa, aí tentei na secretária do colégio, foi quando eu descobri que o Lance era o seu primo. Fim da história.
Como assim Fim da história? O que o meu primo disse? O que ele não estava me contando?
— Então o meu primo vai passar aqui pra me pegar ou o quê?
— Ele já passou por aqui e ... bom, ele acha melhor você ficar por enquanto aqui mesmo.
— Claro, isso é bem coisa do Lance mesmo.
Eu me esqueci da profunda antipatia dele com os meus irmãos. Que ótimo estou presa aqui então? Não que eu esteja reclamando, a casa é incrível, o cara é um gato, e muito bonzinho por me deixar ficar aqui, mas convenhamos, eu tenho casa, tudo bem é um verdadeiro manicômio, mas é o meu manicômio.
— Eu estava indo ver um filme, quer ver comigo? – Ele virou após colocar algo no microondas e ligar.
Pipoca é claro! Não era preciso ser um gênio para descobrir que o estouro era do milho, claro e ainda tinha o cheiro inconfundível, delicioso.
— Hum que filme pretende ver?
Ele me olhou como se pedisse desculpas.
— Er, que tipo você curte?
Por que será que ele nunca responde as perguntas diretamente? Sempre acaba fazendo outras pra desviar a atenção.
— Respondo depois que me responder.
Não sei o que ele acharia do meu gosto por filmes de horror.
— Hum peguei O retorno dos zumbis assassinos.
Eu ri, e eu pensado no que ele diria do meu gosto por filmes.
— Esse parece legal. Já vi o anterior, espero que a continuação seja um pouco melhor do que a sessão estripa e sangra.
Ele riu, e riu muito. A risada dele encheu a cozinha, o peito dele tremia com o som retumbante.
Eu levantei do banco com cuidado, as minhas pernas adormeceram por ficar sentada em má posição. Pisar no chão era como ter milhões de agulhas afiadíssimas cravando na sola dos meus pés. Mordi o lábio pra não emitir um lamento.
— Ai droga a minha perna adormeceu. – Comecei a estapear as pernas, tentando inibir a sensação de formigamento. Não que isso fosse trazer a normalização do meu fluxo sangüíneo, mas bem que dava uma sensação de alívio.
Amon tirou a pipoca do microondas e a despejou em uma bacia, o cheiro da pipoca quente inundou a cozinha. Ele sorriu ao colocar uma mão cheia de flocos brancos pra dentro da boca. Um brilho em seu olhar o traiu para o que ele tencionava fazer.
Automaticamente eu dei um passo pra trás, acabei batendo no banco em que estive sentada até a pouco. Ele colocou a bacia em cima do balcão e em um passo ele se abaixou e me puxou pelas pernas, me jogando sobre o seu ombro.
Tudo foi tão rápido que quando percebi ele já estava a caminho da sala, comigo atravessada em seu ombro. Eu muda é claro.
Ele andava calmamente enquanto enchia a boca de pipoca.
Se ele continuar a comer assim, até chegar seja lá onde ele pensou em ver o filme as pipocas já teriam acabado.
— Sabia que eu posso andar? – Tentei dar a minha voz o maior tom de censura possível. Óbvio que sem o menor sucesso.
— Eu sei, só que assim é mais rápido.
Eu estava me acostumando à risada dele, ele vivia sorrindo, ou melhor rindo.
É, tenho a certeza de que grande parte disso se deve à minha triste condição.
Como ele me pegou ele me jogou.
Em um segundo eu estava sobre o ombro dele, tendo uma visão altamente privilegiada da bundinha dura dele. Ai, ai. E no instante seguinte eu desabava sobre um sofá de couro preto. Pelo menos parece ser couro, ou algo parecido. O tecido aveludado era delicioso ao toque. Eu realmente não me importaria de ter um sofá desses em casa, até abriria mão da cama.
Ele me passou a bacia de pipoca, ele já havia comido metade e foi colocar o filme. Não quis estragar a diversão dele, mas já tinha assistido. Uma das vantagens em conhecer o dono da locadora é que sempre pego os lançamentos primeiro. O filme não é lá essas coisas, mas dá pra rir um bocado com a iverossímilidade da história.
— Acho melhor você ir pra cama ou vai acabar dormindo aí mesmo. – Ele riu.
— Eu tô bem. — A minha voz ficou rouca, dei um pigarro e ele riu mais ainda.
Estávamos os dois largados no sofá. Eu normalmente assistia os filmes deitada no chão lá em casa, o sofá não é muito confortável, só que o dele era tão gostoso que você nem sente, é como estar envolta a algo macio. Tentei combater o sono melhor do que eu pude, no fim acho que cochilei. Acordei quando ele me pegou no colo.
— Pode deixar eu vou andando. – Tentei em meio a bruma do sono argumentar com ele.
— Claro que vai.
Não pude responder, já estava dormindo.

Acordei novamente naquele quarto estranho. Acabei não perguntando se aquele quarto era o dele ou do primo modelo. Se bem que devia ser o dele, afinal porque o primo dele deixaria o laptop dele ligado se não estava aqui?
Como eu já estava melhor acostumada ao lugar, eu podia reparar em certos detalhes que havia passado despercebido da primeira vez. Como um sutil perfume masculino, que por sinal era muito bom. No caro som uma música tocava baixinho. Não tinha a menor idéia de quem era a banda. Hum, a música era até legal. Ia perguntar de quem era o CD, quem sabe eu não o comprava.
O meu dever de casa estava em cima da mesa. Peguei as folhas. Ia precisar do final de semana inteiro pra fazer tudo aquilo. Comecei a olhar as páginas. Agora foi a minha vez de rir. Ele havia respondido o meu dever. – Que gracinha, ele ficou preocupado.
Kyra não fantasie, ele só está sendo gentil!
Se eu fosse loira e se ele não tivesse namorada bem que eu daria em cima dele, apesar de eu preferir os morenos misteriosos.
Peguei a minha mochila e fui para o banheiro dele. Precisava de um bom banho pra tirar essas fantasias da cabeça.

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