sexta-feira, 1 de março de 2013

Branco - Capitulo 5


Capitulo 5



Será que quando eu voltar a minha realidade tudo vai voltar a ser como antes?
Será que não dá pra ter um meio termo, não? Tipo, eu continuar a ter uma mãe?
Sabe ter um carro é legal, roupas novas também. Tá não vou ser hipócrita ao negar que fiquei feliz ao não precisar mais ir a pé pra casa, agora chego seca e não preciso sair de casa tão cedo, e não me importo nem um pouco de levar a Pê pro colégio no outro lado da cidade.
Só gostaria de não me sentir tão confusa, é claro que eu em minha condição de adolescente vivo em um estado permanente de confusão, mas convenhamos, o meu estado tem extrapolado e muito o bom senso. Por isso, tenho ficado na minha — como sempre.
— Ei mocinha, onde pensa que vai com tanta pressa? — Freddy me girou até que parasse em frente a ele.
— Oi Freddy. Indo pra casa e você?
— Kyra, Kyra. Tem de parar de se esconder, ou logo você vai desaparecer...
— Qual é o episódio da vez?
Quando o Freddy começa a filosofar é porque ele pegou alguma maratona de algum seriado futurístico, daqueles onde se começa com... “O espaço, a fronteira final”[1]
— Nenhum. — A cara que ele fez me dizia o contrário, e como não estou a fim de discussão deixei essa passar.
— Sei.
— Sabe eu realmente penso que você deveria expandir seus horizontes Kyra. Que tal cinema e sorvete na sexta?
Hum, sorvete? Você realmente sabe como tentar uma garota.
— Isso é um convite ou vou servir de cobaia pra algum estudo? — Da última vez que fui convidada pelo maluco do meu amigo pra algo ele queria me usar pra provar que uma tese estúpida de algum cientista estava errado, nem preciso dizer que fiquei fula ao descobrir isso.
— Apenas um singelo sorvete. — Ele sabe fazer cara de sofredor como ninguém. Só que eu o conheço muito bem pra cair nessa.
— Sei.
— Tá bom, to querendo ver Massacre na lua escura, e como de todos que conheço só você curte esse tipo de filme. — Ele deu os ombros. É por isso que somos amigos desde sempre, um conhece muito bem o outro pra se deixar levar por meras palavras.
— É claro que eu vou, ainda mais por que você vai pagar a pipoca. — Sai indo da cara dele.
— Pipoca? Que pipoca? Combinei sorvete. Kyra!
Os corredores já estão cheios, a minha saída tão bem planejada foi por água abaixo.
— Droga.
O Amon está parado conversando com não-sei-quem e pra sair vou ter de passar por ele.
Desde o episódio da minha piração na piscina e a minha conseqüente ida pra casa dele não o vi mais, sou boa em me esquivar de ser vista.
Amon franziu a testa quando me viu passar rapidamente sem o cumprimentar, se não fosse pelo Lance ter agarrado o meu braço era exatamente isso que eu ia fazer.
— Que eu saiba você ainda tem educação, não vai dizer: oi primo? — Ele me olhava como se eu tivesse cinco anos novamente. Tá eu concordo, nem sempre é fácil ter educação sendo uma adolescente do segundo grau.
— Oi primo, olá Amon. — A minha vontade era a de sumir. Nem pro Amon estar um pouco mais afastado. As pessoas passavam fazendo caretas. É eu queria morrer. Só de pirraça o Lance segurou a minha mochila, impedindo que eu saísse correndo. A conversa deles parecia não ter fim. Claro que isso é premeditado. — só pra me irritar.
— Kyra, baixei uns filmes que você curte, não está a fim de ir lá em casa depois da aula ver? O Amon ficou de levar as pipocas.
Eu me engasguei é óbvio. O Amon havia me dito que nunca saía, é cem por cento treino. Que raios está acontecendo aqui? Antes que eu tivesse a oportunidade de perguntar a total-super-colante namorada do Amon apareceu.
— Vão onde, que se esqueceram de me convidar? — Ela serpenteou inteira em volta do pobre e lindo Amon, se enrolando toda em volta dele. — Cobra!
— Olá pra você também Amanda. Parece que nesta escola as pessoas se esquecem da boa educação.
Pelo visto o meu querido primo não ia muito com a cara dela não. Ela deu os ombros sem se importar de mostrar uma grama sequer da boa educação. Ela lançava fogo pelos olhos em minha direção. Fingi que não era comigo.
Amon sempre tão gentil pigarreou tentando acalmar a situação.
— Vamos a casa do Lance, quer vir junto?
Eu mordi a língua pra evitar de gemer diante do convite e do ar todo bobo que ele fez pra namorada-grude-cobra dele.
— E por que é que a aberração da escola foi convidada? — Ela bem que podia ter falado isso em um tom normal de voz, mas não, ela tinha que falar alto o suficiente pra escola inteira escutar, e nem precisou de megafone pra isso. Eu só não saí correndo por que o Lance continuou a agarrar a minha mochila, e também, neste exato momento, ele está bufando de raiva.
— Olha aqui sua vadia, limpe a boca pra falar da Kyra. Pelo que me consta a única esquisita de verdade do colégio é você.
A guria ficou roxa, eu até poderia ver a fumaça saindo por suas orelhas. Ódio é pouco para o que ela está sentindo agora.
— Estranha? Como ousa garoto. A única aberração aqui é essa garota, que chegou ao cúmulo de inventar que está namorando com um cara que sequer sabe que ela existe.
— Peraê. Eu nunca disse que eu namoro alguém. Nunca disse que tenho um namorado.
Agora o colégio inteiro acompanha a discussão.
— Há disse sim, me lembro perfeitamente, quando eu flagrei você na hidro com o meu NA-MO-RA-DO!
Puta merda e agora, fui promovida a vadia ladra de namorado número um do colégio.
— Se ela está dizendo que não tem namorado, é porque não tem! — Dá pra sentir a irritação do Lance.
— Amor, você está nervosa, se acalme. — Ele bem que tentou fazer com que ela recobrasse o juízo. Um desperdício total de palavras. Ela realmente está interessada no escândalo e me enterrar socialmente de vez.
— Não me calo coisa nenhuma. Eu falei com o seu precioso namorado e rimos muito do quão patética você é aberração.
— Cala a boca sua esquisita!
Agora fui eu quem segurou o Lance, ou ele vai acabar batendo nela.
— É bom você parar agora Amanda. — O Amon estava perdendo a paciência, justo ele que sempre foi tão gentil, amigo, está realmente irritado com o circo que ela está armando.
— Ou o que atleta de ouro? Me diga?
— É bom parar, porque a verdade sempre aparece.
Ele fez!
Ele usou a voz com ela. Meus olhos com certeza devem estar saltando pra fora agora. Se, antes eu estava quieta pra evitar que a guerra gratuita dela não avançasse pra agressão física e com isso amargar uma suspensão que eu não ia ter como justificar pra minha mãe. Putz, se isso acontecer vou perder toda a confiança que ela inexplicavelmente passou a ter comigo. Por outro lado eu estou nesse instante muda e com os olhos saltando pra fora das órbitas de espanto, o que não me impediu de ver o Cedric no meio daquele mar de alunos e se aproximando.
Deus por favor, faz ele ir embora. Não vou suportar ter de enfrentar o veneno da Amanda e o escárnio dele ao mesmo tempo.
— Verdade! Você quer a verdade atleta de ouro? Pois eu lhe dou a verdade. Essa vadia não está namorando com o Cedric, eu estou!
— O que você disse? — Ele soltou o braço dela.
Eu olhei pro Cedric sem acreditar naquilo.
Deus. Devo estar com a boca aberta repetindo e repetindo as palavras do Amon em minha cabeça. Minha voz sumiu.
— Vadia!
Alguém ou o Lance deve ter dito isso, não que importe. O que realmente importa é o porque eu imaginei que ela falou que está namorando com o Cedric. Como pode ser isso?
E o Amon? Como ela pode trocar o príncipe dos mares pelo meu Cedric?
Não que ele seja oficialmente meu, mas justo com ela?
— O que você escutou garoto dourado. Está olhando pra nova namorada do Cedric Stephanno.
— Aproveite esquisita. — Amon afastou dela como se ela fosse algo contagioso. Quase tive pena dela. — quase.
Ela empalideceu e abriu os olhos como dois pratos. É caiu a ficha agora e percebeu a besteira que fez.
— Vamos Kyra. — Amon passou o braço sobre meus ombros me obrigando a andar enquanto o Lance carregava minha mochila. Me senti como Moisés ao abrir o Mar Vermelho, por que o corredor se abriu a nossa frente. Podia sentir a tristeza dele, não é fácil manter a cabeça erguida com o coração despedaçado.
— Ei cara, que muvuca foi aquela?
— Nada de mais TJ, só a esquisita da Amanda querendo publicidade.
Queria saber do porque os garotos perderem tanto tempo fazendo aqueles cumprimentos sem sentido de ficar batendo os punhos um dos outros. Esse TJ deu um longo assovio e enrugou a testa perfeita dele.
— Estão indo aonde? — Ele começou a andar, ou melhor ele parecia uma galinha choca quicando de lá pra cá.
— Lá em casa. Vamos ter uma sessão extirpa e sangra. — Meu primo falou sem muito animo.
— Uau to nessa. Vai chamar a turma?
— Tudo bem, mas sem cerveja e sem mulher. — Meu primo não está em seu melhor humor, posso ver isso no rosto dele.
— Pô, assim não tem graça cara.
— Minha casa, minhas regras.
— Ok. Ok. Vou falar com a galera e avisar pra só levarem refri.
A essa altura já estávamos saindo pela porta em direção ao estacionamento o TJ desceu em direção contrária falando com-não-sei-quem no celular, pelo visto ele ia pro ginásio.
— Lance, olha só. Tenho de ir pegar a Petúnia. Fica pra outro dia tá, as coisas saíram meio fora de controle. — Ou ele não me escutou ou fingiu que não me viu, porque ele começou a falar freneticamente no celular.
— Lance, me escutou? — Ele continuava a falar, só levantou a mão e me deu as costas. Se ele não fosse o meu primo e eu gostasse dele eu o matava agora mesmo.
O Amon continuava com o braço em meus ombros, eu o sentia tremer. O garoto vai desabar a qualquer momento. Comecei a andar em direção a carro dele. Rezava pra que ele tivesse condições em dirigir.
— Suas chaves. — Ele está andando como um zumbi.
—Suas chaves Amon. — Ele me olhou como se eu estivesse falando em latim. Merda, o cara tá em choque. O encostei contra a lateral do carro dele. Definitivamente ele está em choque, está com aquele olhar perdido.
— Olha só, eu vou colocar a mão em seu bolso pra pegar a chave tá. Não vai pensar nada de errado. — Não sei por que estou falando, ele não deve estar escutando nada mesmo. Coloquei a mão no bolso dele, rezando pra não tocar em nada mais que a chave do carro. Chave na mão, porta aberta, o fiz entrar, alguém vai ter de dirigir o carro dele. Esperei o Lance se aproximar pra avisar que ele vai ter de arrumar alguém pra levá-lo pra casa. Alguém tem de ficar com ele.
— A Lilith está vindo.
O que a minha insensível irmã tem a ver com o que está acontecendo? E por que raios ele a chamou?
— Não entendi. Porque a chamou, você a detesta. — Eu sentia as rugas em minha testa, eu perdi alguma coisa?
— Pra levar o seu carro. Você dirige o do Amon.
Eu olhei pro Amon sentado com o olhar perdido.
— Tá louco? Eu é que não vou dirigir o carro do primo dele. Sabe quanto vale essa coisa? Pois eu não, e não quero correr o risco de bater ele. Você o dirige. — Joguei as chaves pro Lance, quando fui me afastar o Amon segurou o meu braço.
— Por favor.
Jesus, como alguém em sã consciência vai negar algo a ele? Só aquela maluca da Amanda pra fazer isso.
— Não posso dirigir esse carro. E se eu bater?
— Por favor.
Eu fechei os olhos. Droga ele é o cara errado. — Mundo paralelo alôôôô.
— Vamos no meu, eu preciso ir buscar a minha irmã e já estou atrasada, depois voltamos e pegamos o seu.
— Minha mãe já foi buscá-la e avisei a sua mãe de que você vai passar uns dias lá em casa. Ela vai levar algumas roupas pra você. Não se preocupe eu expliquei tudo a ela, só preciso da sua chave pra Lilith levar o seu carro.
— Opa, alguém me chamou?
— As chaves Kyra!
Certo, certo. Que Deus tenha piedade e que o Panteão dos anjos me proteja. Dei um suspiro, essa eu perdi.
— Dentro do bolso externo da mochila.
Lance abriu o bolso a procura da chave e a passou pra Lilith.
— Você leva o carro da Kyra, já avisei a tia. Nós vamos ver uns filmes lá em casa.
— Legal, que tipo de filmes? — Perguntou toda acesa. Claro, a estrela do colégio levou um toco em público há alguns minutos atrás, a chance de saber mais detalhes é tentador.
— Festival Godzila e Jogos Mortais.
Tive vontade de rir, ela detesta esse tipo de filme, acho que é por isso que eu gosto tanto.
— Ai credo, que horror. Quer que eu vá te buscar mais tarde?
Seja bem vindo ao mundo paralelo, onde a sua realidade é inversamente oposta a tudo o que você conhece. Alôôô. A Lilith N-U-N-C-A foi gentil.
— Não precisa. Vamos? — Ele saiu levando a minha mochila, o Amon continuava a segurar o meu braço e a Lilith com aquele olhar ansioso.
— Ok, vamos. — Dei um sorrisinho pra que ele me soltasse e dei a volta rezando pra não bater em ninguém no caminho.
— Você está bem? — Eu precisava fazer algo ou não ia conseguir tirar o carro do estacionamento do colégio, e ele está muito quieto.
Após engasgar o motor umas cinqüenta vezes consegui fazer essa máquina começar a rodar. As minhas mãos soavam em volta do volante. O Amon olhava pela janela com aquele olhar perdido. Eu estou tão triste por ele, ele parece gostar muito daquela cobra.
— Não prefere ir pra sua casa? Talvez queira ficar sozinho pra pensar. Sei lá eu...
— Você tinha razão, eu não quis acreditar. — A voz suave dele era como música.
— Eu tinha? Hum, sobre o que exatamente? — Sabe o tico e o teco não estão trabalhando muito hoje. Eu mantinha os olhos na estrada, devo estar sei lá a uns vinte por hora, não ligava a mínima. Não quero correr riscos desnecessários. Também sou boa em ignorar as buzinas histéricas atrás de nós.
— Eu fiz como você falou, usei a voz e ela falou. Suponho que também eu seja meio peixe, o que vai ferrar com as minhas intenções de ir pras olimpíadas.
Eu fiquei em silencio tentando achar algo pra dizer a ele. O que eu poderia falar? O cara havia perdido tudo, o mundo dele virou do avesso na mesma tarde.
— Bom, se você fizer a maior parte do treinamento na sua casa, e evitar as provas muito longas, pode dar certo. Só não posso dizer que dê pra você ir pras olimpíadas. Isso vai depender do quanto tempo você ainda tem antes de se transformar. Isso se realmente você for um tritão.
— Acredita nisso?
— Amon, nesta última semana o meu mundo enlouqueceu. E neste exato momento eu estou rezado pra tudo quanto é santo que existe que não me deixe bater esse carro. Estou tão apavorada que não sei como estou conseguindo dirigir.
— O carro têm seguro.
— Mas eu não. — Uma maldição saiu da minha boca quando o carro morreu.
Ele abriu a porta e desceu do carro.
— Tudo bem eu dirijo. — Ele abriu a minha porta.
— Mas, mas.
— Relaxa. Eu estou bem. Sou um peixe, lembra? — Ele me deu aquele sorriso-raio-de-sol. Eu desci e o deixei assumir o volante. As buzinas continuavam. A fila de carros atrás estava enorme. Por que é que eles não passam pelo outro lado? Depois eu é que sou a estranha.
Sentei, coloquei o cinto e ele ligou o cd player e colocou no último volume. Posso sentir a vibração da garganta do Chester em minhas costas.
Deus sou bem capaz de amar esse garoto. Ele gosta de filmes de terror, do Linkin Park, do que mais uma garota precisa? Sorri pra ele e ele pisou no acelerador. Dessa vez não fiquei enjoada, estava babando diante do sorriso dele.


Assistir filmes na casa do Lance até que foi legal, isso se não levar em conta todos os gorilas que tive de passar.
Heloooo eu sou a esquisita lembra?
Gorila número um: minha mãe abraçando o Amon e agradecendo pela quinquionésima-centésima-milésima vez.
Gorila número dois: a equipe de ouro me olhando esquisito.
Gorila número três: os vip’s do colégio me olhando esquisito.
Gorila número quatro: os trinta garotos espalhados pela sala me olhando esquisito.
Gorila número cinco: sou a única garota e ainda por cima, esquisita.
Gorila número seis: ter de dirigir novamente o carro do primo do Amon enquanto o Lance nos segue. Realmente eu não entendi do porque ele não dirigir a droga da Ferrari e me deixar dirigir o Crysler dele. Pensei que dirigir essa coisa era o sonho de dez entre dez garotos.
Gorila número sete: ter de levar o Amon pra cama — dele e saber de primeira mão pelo meu estimado primo que eu terei de retribuir a favor e ficar de olho nele. Ele saiu me deixando naquela casa sozinha com o Amon — novamente.
Por via das dúvidas, dormi de jeans.

Eu olhava critica as dezenas de prateleiras cheias da geladeira do Amon, tentando encontrar algo normal ali. Como um bom garoto meio-peixe ele é um adepto a alimentação saudável. Argh. Tudo bem, eu gosto de saladas, mas alôôô não no café da manhã.
— Finalmente algo útil, ovos. — Tirei a embalagem a colocando na pia. Será que o Amon come muito? Acho que seis bastam, se ele não comer eu como no almoço. Meu estomago resolveu encrencar, começando a reclamar de fome.
— Bom dia.
Quase deixei cair os ovos.
— Bom dia. Está com fome? Espero que não se importe. — Mostrei os ovos que estou a ponto de quebrar.
— O que está fazendo? — Ele sentou na banqueta e ficou olhando. Ele está com cara de sono, como se houvesse acordado antes da hora, ficou totalmente evidente quando ele apoiou a cabeça na mão, ele não parava de bocejar.
— Acho que alguém não dormiu o suficiente. Como gosta dos ovos? — A minha atenção totalmente voltada pro café da manhã, meu estomago não para de roncar. Fiquei rezando pra que ele não escutasse.
— Mexidos. Tem cheddar na geladeira.
Terminei de quebrar os ovos e joguei as cascas no lixo. Ótimo fiz a maior sujeira.
— Aqui. — Ele colocou o queijo na bancada ao lado da pia e começou a abrir as portas da infinidade de armários e a antecipar o que eu acabaria pedindo a ele. No fim, acabei sentada olhando ele cozinhar.


Chegar na escola em uma Ferrari e com o garoto mais popular não é pra qualquer um, mas a melhor parte foi ver a cara de ódio da Amanda, principalmente quando ela foi deixada bufando sozinha no estacionamento. O Cedric não a esperou. O Amon não disse uma palavra sobre o que aconteceu e algo me diz que ele não vai falar nada. Por fim, acabei onde a Lilith sempre quis estar — entre os populares da escola.
A ficha caiu quando entendi o porquê de tanta gentileza por parte dela, eu poderia abrir esse mundo pra ela — pro meus dois irmãos egoístas. A vida é realmente uma caixinha de surpresas.

— Ei mana, precisa de carona pra casa? — Fechei meu armário, não acreditando em meus ouvidos. O Cris está falando comigo e em público? Eu me virei lentamente pra me deparar com o meu irmão parado e me olhando, será que ele está esperando resposta?
— Er, eu tenho um carro agora. — Sério isso já extrapolou a barreira do além da imaginação, não que eu esteja reclamando dessa dimensão bizarra, mas, qual é isso já abusou de qualquer bom senso.
— Se precisar é só falar. Te vejo em casa. — Ele se virou e saiu.
Bom eu não posso ficar ali parada, não é? Peguei o CD com a pesquisa pro Amon e segui o fluxo pra fora. Se tivesse sorte o veria no estacionamento, entregaria o cd e pronto! Adeus dimensão paralela e helooo vida insípida de volta.

Abri o olho com um gemido. Quem é o cretino que resolveu ligar a essa hora da manhã? Cobri a cabeça e coloquei o travesseiro por cima, não resolveu. Continuo a escutar a campainha estridente da porcaria do telefone. Por que raios a Lilith não atende? É pra ela mesmo.
— Droga, porcaria. — Levantei batendo o pé furiosa por seja-lá-quem-for ter me privado do meu sono. Ainda não me acostumei a dormir em uma cama, com exceção da do Amon. Eu desmaio na cama dele, deve ser o nervoso por estar tão próximo de um garoto.
Será que ninguém escutou o telefone berrando?
— Alô.
— Kyra?
— Lance? Por que raios você está ligando a essa hora?
— O Amon não está atendendo ao telefone.
— Pelo-amor-de-Deus o cara tá dormindo, são cinco da manhã, você não tem relógio não?
Estou tentada a desligar o telefone e voltar pra minha recém adquirida cama.
— Kyra, por favor. Vai até lá e dá uma olhada se está tudo bem. — Que coisa estanha os dois nem eram amigos até a uma semana atrás e agora ele está quase surtado de preocupação.
— As cinco da manhã? Sem chance e além do mais você mora mais perto. Se está preocupado vá checar, vou voltar a dormir, passei metade da noite estudando e não quero dormi em cima da minha prova.
— Mas Kyra.
— Boa noite primo. — Desliguei o telefone. Ainda estou no mundo paralelo. Subi a escada me arrastando pro meu novo quarto. Uma coisa boa, o sono não me abandonou.

Meu primo é um manipulador e tanto. Sorte a minha que ninguém da minha família tem isso ou eu estava ferrada de vez.
Acabo de deixar a Pê na escola e tenho as palavras do Lance martelando na minha cabeça. “O Amon não está atendendo ao telefone. Vai até lá e dá uma olhada se está tudo bem.”
— Droga. É melhor você estar bem, ou eu vou ficar muito zangada. — Passei voando pelas ruas. Esquerda, reto, esquerda, direita. O velho Ford quis começar a resmungar.
— Sem essa. A minha mãe dirige bem pior e você não fala nada, então fica quieto e vai mais rápido. — Pelo visto acabei com a rebelião da máquina. Finalmente a esquina da casa dele. O portão da garagem estava se abrindo. Um bom sinal não é? Nenhum carro da emergência a vista.
Zero desculpa é exatamente o que eu tenho.
A Dodge preta sai da garagem. Respirei aliviada ao ver o Amon dirigindo. Não devia ter levado tão a sério o Lance.
— Kyra? Havia marcado com você? — Ele parou ao lado do meu carro-ferrado-Ford.
Zero desculpa Kyra, lembra?
— A verdade é que o Lance não me deixou dormir, ele me disse que você não estava atendendo o telefone. — Nada como ir direto na ferida.
— Não devo ter escutado, estava estudando e a música ficou meio alta.
Eu te entendo amore perfeitamente, há se entendo.
— Sei como é, vou avisar o Lance, as vezes ele dá uma pirada. — Hum isso tá ficando estranho.
— Te vejo por aí.
Fiz a volta enquanto via a camionete dele desaparecer na curva da rua.
— Bem vinda de volta ao mundo real Kyra. A vantagem é que agora você está motorizada.
Liguei o rádio e fui pra escola ao som do T-pac. Não sou fã de rap, mas cara, ele sabia como fazer a coisa.


— Sala de música? E porque raios eu tenho de ir pra lá? Nem tenho aula de música. — Olhava o papel na minha mão sem compreender a insanidade desse homenzinho na minha frente.
— Olha aqui senhor, estou fazendo um teste, ok. Você se enganou. — Entreguei o papel e voltei pra minha carteira. E eu pensando que tudo havia voltado ao normal.
— Kyra!
— O que?
— Quando terminar deve acompanhar esse, esse senhor.
Putz o cara ainda está ali? Tem certas pessoas que não entende mesmo.
— Que seja. — Acho que devo ter bagunçado de alguma forma essa realidade por que as pessoas perderam o pouco bom senso que possuíam.
— Kyra!
Se me chamarem de novo vou gritar. Levantei a cabeça irritada, apontei a prova e voltei as perguntas.
Quinze minutos depois estou andando pelo corredor, escoltada por esse cara esquisito (é porque ele é muito esquisito), até a porta da sala de música, o cara ficou na porta até que entrei. Sinistro isso.
— Oiê, tem alguém aí? — Ótimo! Apurrinharam durante o teste e pra que? Pra nada, não tem ninguém aqui.
— Seja quem for que estava aqui deixou o cd player ligado.
— Tá perdida Kyra? — Uma voz doce e rouca me fez virar pra porta.
— Amon! Parece que é você quem está perdido. — Ri do ar sofrido dele.
— Horário vago. E aí o que está fazendo aqui?
— Não tenho idéia. Um sujeito muito do esquisito quase deu um de homem das cavernas e me arrastou da sala de aula e não tem ninguém. — Ambos olhamos pros lados. Ninguém. A música também parou.
— Tem aula agora?
— Fui dispensada. — Chacoalhei o papel da dispensa. Ele sorriu. Não um sorriso qualquer, aquele sorriso de quem está tendo idéias que pode dar problemas se formos pegos.
— Bom, parece que ambos estamos com o horário vago.
— Pois é. — Sabe, estou começando a não desejar mais voltar pro meu velho mundo. Essa nova realidade está ficando cada dia mais interessante.
— Sei de um lugar ótimo, quer vir comigo?
Como não aceitar, ainda mais ele falando assim. E ainda existe a prerrogativa de um pedido feito diretamente pelo anjo loiro. É, taí um pedido difícil de recusar.
— Claro, to sem aula mesmo. — Céus, estou começando a pedir pra não acordar, ainda mais porque o meu príncipe dos mares pegou a minha mão como se fosse a coisa mais normal do mundo. Por sorte os corredores estão vazios, assim não teve aquele momento: “ei olha a garota que era o zero a esquerda com o cara mais popular da escola.” Sorte a minha, ainda não estou preparada pra certas coisas nessa louca-realidade-alternativa.

Irritado, um par de olhos a vê afastar-se com o garoto-peixe.


— Kyra Thompson!
Levantei o rosto do caderno, deixando o exercício de física que não queria ser resolvido. O professor Cruz apontou pra porta. O professor tem um nome perfeito, porque cada vez que tento resolver essas equações me sinto pregada na cruz.
Olhei pra porta, uma mulher da secretária estava parada com um papel nas mãos e olhava pra sala como se fossemos um bando de ETs.
— Kyra Thompson!
— Aqui! — Levantei a mão, o resto da sala olhava tentando adivinhar o que eu tinha aprontado pra virem atrás de mim. É eu também me perguntava isso.
— Venha comigo! — A mulher se virou e saiu andando, o professor ficou mais que feliz em me mandar atrás dela.

— O diretor vai falar com você, entre.
Porque será que eu e sinto como se estivesse indo pra minha execução? As vezes essa realidade alternativa assusta. Respirei fundo, dei um sorrisinho meia boca e entrei pela porta aberta da sala do diretor, ele, claro, olhava uns papéis como se eu não existisse.
Depois de sei lá, umas cem horas esperando resolvi agir como um dos descolados do colégio. Sentei. Já que é pra esperar que, pelo menos eu ficasse confortável, e olha que a cadeira é bem macia. Por que será que não fazem as carteiras assim também? Tenho certeza de que se evitaria muita matação de aula.
Acho que vou começar a andar com um kit de unha nos bolsos, tenho ficado muito tempo olhando pros tocos que é a minha unha ultimamente.
Resolvi mudar de tática e comecei a torcer o cabelo, era isso ou acabar sem unhas, e será que eu ficaria bem de tranças?
— Bem senhorita Thompson, sabe o porquê de estar aqui?
É óbvio que não, se eu soubesse não estaria aqui com o cabelo todo torcido.
— Não senhor. — O chato do diretor sequer olhou na minha cara, ele continuava a mexer no monte de papéis espalhados pela mesa dele. Porque é que ele não fala logo de uma vez, não que eu esteja achando ruim matar aula, nos últimos dias tem acontecido muito.
— Está aqui pela destruição da sala de música.
Do que é que ele está falando?
— Como é? — Fala sério, to tão pasma que nem pensar eu o conseguindo. Brancura total.
—Você destruiu a sala de música, confesse!
— Eu? Não!
— Conforme o relatório em minhas mãos, você foi dispensada da sua aula pra que você passasse o período na sala que agora se encontra destruída e como foi a última a estar ali, eu pergunto novamente. Você destruiu a sala de música?
— É claro que não! — Que absurdo isso, deixa o tico e o teco começarem a pensar que eu já digo onde você deve ir com as suas suspeitas descabidas.
— Então, explique como a sala se destruiu após a sua partida?
— E eu vou saber? Ontem um cara sinistro interrompeu a minha prova de história, querendo que eu fosse pra sala de música e olha que eu nem tenho aula de música e quando cheguei lá, adivinhe, não tinha ninguém.
— Então a sala se autodestruiu sozinha?
Meleca.
— Estava tudo bem ontem quando eu saí com o Amon.
— Com quem?
Uff, até tinha esquecido do Amon.
— Amon, ele tinha o horário vago, e como a sala de música tava vazia, despencamos pro campo.
— Você disse estar com o Amon, por acaso seria o mesmo Amon Oceanic o nosso medalhista da equipe de natação?
— Foi o que eu disse! — Será que ele tem problemas de audição? Ou está falando alto assim pra que a escola inteira saiba?
— Certo. Irei confirmar com o senhor Oceanic, não é preciso lhe informar que se sua história ao se confirmar a senhorita estará em sérios problemas.
Ufa, então não tenho com o que me preocupar, eu não fiz nada mesmo.
— Pode ir, a senhorita está perdendo aula.
Essa é boa, me tiram da aula, diz que fiz algo que não fiz e, putz, fala sério, eu to matando aula. Eu? Essa é boa.
Beleza! Ele voltou a olhar e a escrever algo na papelada espalhada na mesa, cai fora antes que acabasse com uma advertência. Bem no meio do corredor vazio o sinal toca.
— Que ótimo o sinal e antes de eu chegar na sala.
—Kyra! Beleza?
— Tudo. — Respondi mecanicamente, seja lá pra quem for.
Esse mundo paralelo já deu, cansei dessa loucura, vou pra casa, só queria que, sei lá o que eu quero.
— Vai na festa Kyra?
— Não to sabendo de nada não. — Festa! Que festa? Do que é que estão falando?
— Se deu bem hein Kyra, detonou a fresca da Amanda.
— Eu não fiz nada! — E quem é essa guria?
— Oi Kyra, faz tempo que não nos vemos.
— Tá falando agora comigo é Suzy? — A garota parou bem na minha frente, é impossível não a ver.
— Amiga, nunca deixamos de nos falar. Só fiquei ocupada com o meu namorado, você entende não é? Agora podemos sair juntas eu com o meu e você com o seu.
Putz, do que é que ela tá falando? Namorado? Peraê, quando é que começaram a ficar legal comigo e passaram do estágio de ignorar completamente a Kyra e se tornarem amigos da Kyra?
— Está falando do que?
— Deixe de timidez comigo, todos já sabem do seu namoro com o poderoso senhor medalhista das piscinas, vocês até mataram aula ontem, não adianta tentar esconder, metade do colégio os viu juntinhos atrás da arquibancada do campo de futebol. — A Suzy pegou no meu braço e me arrastou pela multidão do corredor como antigamente, claro que antes era eu quem fazia isso.
— Suzy, não tenho nada com o Amon, somos só amigos.
— Kyra, Kyra não é preciso mentir pra mim. Somos amigas, lembra?
— Não estou mentindo. — Pô é sério, ela devia saber disso.
— Tudo bem, ainda está zangada comigo, mas você não tinha um namorado e vive sempre nesse seu mundinho que...
— Que o que Suzy? — Do que é que ela está falando agora?
— Vamos Suzannah, parece que a sua antiga amiga está pilhada.
Legal, esqueci da nova amiga da Suzy, a chata e totalmente fresca Laurie.
— Pode ir Laurie, vou em seguida. — Ela dispensou a chatonilda com aquele típico comportamento de Barbie.
Pelo visto só vou ter a minha amiga de volta se eu estiver de rolo com o Amon. Como ela pode mudar tanto? Será que eu não vi isso ou eu estava sofrendo de cegueira fraterna?
Aguardei a resposta dela, apesar de estar lendo em seus olhos. Desde que ela começou a andar com a fresca da Laurie a minha ex-amiga mudou. Mudou suas roupas, cabelo, maquiagem. Estou agora olhando pra versão morena da Barbie e não mais pra minha querida amiga Suzy.
— Somos só nós agora Kyra, como antes.
Certo, nós e o corredor cheio.
Ela sorria, mas seus olhos... seus olhos estão, cínicos. Deus como pude me enganar tanto assim?
— Quer saber a verdade?
— É claro amiga.
— Compre o livro! — Saí o mais rápido que pude do colégio.
Pra mim já deu dessa realidade, nenhum carro, quarto ou o que quer que seja de benefícios vai me seduzir. Quero a minha vida insípida de volta.
— Ei Kyra.
— Depois Lance. — Eu praticamente corria pro estacionamento.
— Espera, quero falar com você.
Vai ficar querendo primo. Entrei o velho Ford e saí cantado pneu. Eu dirigi, não pra casa, não queria explicar o meu surto pra minha mãe, não agora que estou me acostumando a ter uma mãe. Dirigi pela estrada oeste até o bosque, queria um lugar onde pudesse pensar, sem ninguém. De alguma forma, preciso consertar essa bagunça e ter de volta a minha vida.
Estacionei fora da estrada e comecei a andar por entre os abetos, estava sufocada, precisando desesperadamente de ar. Corri até o meu coração ameaçar sair pela minha boca. Até uma clareira aberta por uma árvore caída. Com a mão o coração me sentei. O fôlego já era.
Todos os acontecimentos dos últimos dias vieram como uma enxurrada; o meu descontrole na piscina; o meu salvamento pelo Amon, ele cuidando de mim; a minha mãe percebendo que eu existo depois de sei lá quanto tempo; o carro; a briga do Amon com a Amanda na frente do colégio inteiro; o Lance fazendo com que eu ficasse mais próxima do Amon; a Suzy querendo voltar a ser minha amiga, por que pensa que eu tenho algo com o Amon, ela e o colégio inteiro.
— Merda! — Pelo visto se eu deixar de ser a “amiga” do Amon volto a ser invisível novamente.
— Maravilhosa realidade alternativa. Isso não é justo sabia? Não é justo! — Gritei pras árvores. Só quero que alguém responda, é tão difícil assim? Uma resposta, só uma?
— Droga! — Levantei e saí dali, já deve estar na hora de ir buscar a Pê no colégio.


— Kyra, está tudo bem? — A minha nova mãe bateu na porta do meu novo-e-recém-adquirido- quarto.
Acostume-se a nova realidade! Droga, não dá pra acostumar com toda essa atenção. Passei anos sendo ignorada e agora.
— Tudo mãe. — Abri a porta com um sorriso meio forçado, realmente não quero dar motivo pra ela começar a falar.
— Está tudo bem na escola? — Ela parecia preocupada.
— Tudo. — Tentei parecer o mais normal e despreocupada possível. Ela entrou e sentou na minha cama, me olhando sério. Já vi que lá vem bronca, por que mais ela estaria aqui?
— Tudo mesmo? — É a minha cara não a deve ter convencido muito.
— Sim mãe. — Agora tenho certeza, ou vai ver ela se arrependeu e veio confiscar o carro e o cartão de crédito.
— Que bom Kyra. Se você tiver algum problema, gostaria que viesse falar comigo. Tudo bem assim?
— Claro mãe. — Como se ela pudesse me ajudar nesse rolo de realidade alternativa em que me meti. Ela levantou com um sorriso de quem sabe algo que eu deveria saber.
— O seu primo Lance ligou, queria saber se você está bem.
Então foi isso. Eu deixei ele falando sozinho, ele liga e agora a minha mãe que está com complexo de mãe e ficou preocupada.
— Está tudo bem mãe, é sério! Eu só estava com pressa e não parei pra falar com ele. — Ela me deu um sorriso de alivio e saiu fechando a porta.


[1]         N. A. - Palavras iniciais do seriado jornada nas estrelas.