Capitulo 4
Eu estava muito
fula da vida. Não! Eu estava possessa. Era realmente ridículo que eu tivesse de
ir a pé pra casa todos os dias simplesmente porque os meus irmãos eram uns
bestas completos.
E lá estava eu
novamente furiosa, tentando desviar de toda a lama, e ainda fugir do alcance
dos esguichos de água cada vez que uma roda assassina encontrava uma poça de
água enlameada. Claro que seria pedir muito chegar seca em casa? Não, não
seria. Evidente que não custaria nada se o Cris se dignasse em me dar uma
carona, mas não. Eu tinha de ter o irmão mais egoísta e idiota de todo o
colégio. E o mais absurdo é que ele se acha. Pode isso? Ele se acha um cara
bonito. Eu poso afirmar categoricamente que ele não é bonito, talvez se você
for muito generoso ele possa ficar passável. Claro que nem ele é louco o
bastante pra se comparar com o Amon ou o Cedric, eles com certeza extrapolam
essa categoria, era muito mais que bonitos. Suas belezas tão diferentes como o
dia da noite, eles são lindos. Não, fantásticos, mais do que isso, era como se
o próprio Deus tivesse intercedido em favor deles. Eram como anjos na terra. Os
dois caras, mas lindos do colégio. Meus anjos. Claro que ninguém sabia disso.
Imagine, eu tenho alguma propriedade sobre aqueles seres fantásticos, o anjo
loiro e o anjo moreno.
Sploshhh.
— Merda! A rua é
sua seu babaca? Por que não olha por onde...
Sploshhh.
Outro banho de
lama.
—... anda.
Que porcaria.
Todo dia era assim. Todo dia essa humilhação e tudo por que o Cris se recusava
a me levar pra casa. Por que ele se importaria? Minha própria mãe se recusava a
me dar o dinheiro para o ônibus, isso sem contar com o almoço. Nem sempre eu
conseguia fazer um sanduiche pra trazer. O pior mesmo era chegar em casa horas
depois de todos e ainda escutar bronca por coisas que eu nem tinha culpa.
— Hei valeu,
deve haver alguma parte de mim ainda seca hoje.
Mais três carros
passaram em alta velocidade, jogando toda a água empoçada da rua em cima de
mim.
— Isso são horas
de chegar em casa? – A minha adorável mãe estava começando a dar o seu piti
diário. Claro que não perdi tempo respondendo, isso só iria fazer com que ela
me mandasse pro quarto e me diria que eu ia ficar sem o jantar. Detalhe, eu era
a única daquela casa que não tinha um quarto. Eu dormia na sala por que nenhum
dos meus amados irmãos; leia-se Lilith, Cris e Petúnia, – queriam
dividir o quarto comigo. Então eu durmo na sala. Se bem que hoje é o dia do
Show do Gable, um siticom estúpido que a minha família adora. Se eu for mandada
pro meu quarto isso significa que eu posso ir dormir (finalmente) cedo hoje.
Claro que não falei nada. Absolutamente nenhuma palavra, só passei por ela a
caminho do banheiro que fica na parte superior da casa.
— Por que raios
você está coberta de lama? – A voz dela subiu dois oitavos, e o seu olhar
fuzilante dizia mais do que eu queria escutar nesse momento.
Eu parei no
segundo degrau da escada. Juro por Deus que eu contei até quase cem antes dela
me fazer outra pergunta. Todo dia era a mesma coisa, uma espécie de feitiço do
tempo, um Deja Vu estúpido, claro que sem a parte do final feliz.
— Kyra
Elizabeth Thompson! Onde raios você andou? – A voz dela ficou esganiçada.
Juro por tudo o
que é mais sagrado que eu realmente não queria responder a minha mãe, mas o que
eu ia fazer? Mentir? Ela sabia da verdade, então por que todo esse drama? Eu me
virei calmamente, afinal ela é a minha mãe. Tudo bem que ela é insensível,
egoísta e não esconde de ninguém que gostaria que eu fosse diferente, algo mais
parecido com os meus outros irmãos insensíveis, mas ainda assim é a minha mãe
né? Devo a ela pelo menos algum respeito, afinal ela me deu a vida.
— Apenas os seis
quilômetros da escola pra cá. – Pronto! Falei.
— Você veio
andando da escola pra cá? – A voz dela deve ter suplantado a escala agora.
Fala sério, será
que eu perdi alguma coisa? Quem é essa mulher no corpo da minha mãe? Alôôô!
— Como todos os
dias. – Respondi tentando manter a calma.
Tá bom qual é a
piada?
Realmente eu não estou entendendo o porquê de todo esse circo.
— Como assim
todos os dias? O que aconteceu com o ônibus da escola? Ou as caronas com o seu
irmão?
Agora eu tinha
certeza, ela estava pilhando da minha cara. Ônibus do colégio? Carona com o
Cris? Ela tava de gozação.
— Mãe, a senhora
está bem?
— Sim estou e
você não me respondeu o que eu perguntei Kyra.
Uff. Bufei.
Depois dessa eu me sentei na escada, seja lá o que esteja acontecendo ia
demorar e a roupa enlameada estava começando a pesar. Comecei a tirar as botas
sujas. Pacientemente comecei a falar, não que eu fosse dizer algo que ela não
soubesse, eu realmente estava cansada disso tudo.
— Mãe, o ônibus
não é pago há anos e o Cris se recusa a me dar uma carona, então tenho de ir e
voltar a pé da escola todos os dias.
As minhas meias
que até esta manhã eram brancas agora estavam marrons, ia ser difícil limpar
isso. Eu realmente tentei ignorar o olhar de espanto da minha mãe, acho que ela
deve estar sofrendo de perda de memória, quem sabe eu não consiga plantar a
idéia na cabeça da Petúnia de que seria bom se ela visitasse um médico, só por
via das dúvidas.
— Estou muito
relapsa com você Kyra. Vá tirar essas roupas enlameadas.
A teoria do
mundo alternativo ainda está valendo pelo visto.
— Kyra o que
está fazendo em pé tão cedo?
Que ótimo, logo
cedo e já começa o interrogatório.
— Preparando o
almoço mãe. — Quando é que eu iria acordar desse pesadelo?
— E por que não
almoça na escola como todo mundo?
Fechei a porta
do armário. Isso não estava acontecendo. Será que o meu pedido por paz e
tranqüilidade havia transformado o mundo no maior caos?
— Qual é a
piada? Você nunca me dá o dinheiro pra almoço, muito menos pro ônibus. Todos
nessa casa fazem questão de transformar a minha vida o mais miserável possível.
— Depois dessa eu ia ter de passar a dormir no quintal, será que as barracas
ainda estão no sótão?
— Que barulheira
é essa? — Lilith veio berrando pra cozinha, a cretina estava com a minha blusa.
A minha blusa nova, que eu ganhei no Natal e que por acaso sumiu
misteriosamente. Eu tinha certeza que ela havia pegado, e a cretina negou
quando eu perguntei.
— Você destruiu
a minha blusa! Que merda Lilith, era a minha única blusa. — Eu estava com tanta
raiva, mas tanta raiva que a minha vontade era a de agarrar ela pelos cabelos e
socar a cabeça dela contra a mesa até ela jurar nunca mais chegar perto de mim
novamente.
Ela me olhava
como seu eu fosse a errada, claro como sempre! Não adiantava brigar, eu sempre
fui a minoria. Joguei a embalagem de pão na pia. Hoje eu ia ficar sem almoço.
Já estava atrasada pra aula. Sai antes que eu acabasse expulsa de casa por
brigar com a piranha da minha irmã.
— Lilith
Marrie o que faz com a blusa da sua irmã? E você Kyra Elizabeth
trate de se sentar e tomar o café da manhã com calma vou levar você hoje pra
escola.
— Vai o que? —
Lilith e eu falamos juntas. Não era só eu que estava espantada com essa súbita
mudança da minha mãe. Ela nunca nos leva pra escola, muito menos briga
com a Lilith.
A teoria do
mundo paralelo tá mais forte do que nunca. Fiquei parada aguardando, esse mundo
bizarro para o qual me transportaram era muito estranho.
— Lilith vá
tirar a blusa da sua irmã e se eu ver você usando algo que não seja seu vai se
entender comigo.
— E eu tenho
culpa se ela deixa as roupas dela no meio das minhas? – Ela ainda tentava se
safar colocando a culpa em mim.
Cara-de-pau! Como ela podia
mentir com a cara mais lavada do mundo? Cínica
Grrr. Agora eu
estava rosnando pra ela.
— Para com o
teatro! Você a pegou, e foi a última vez. Não me interessa os motivos
que essa sua mente torta lhe deu, se pegar algo meu novamente, que seja um
papel velho. Vai se arrepender porque eu vou quebrar a sua cara!
— Ai que meda!
A raiva que já
estava fervendo começou a entrar em ebulição a medida que ela gargalhava.
— Quieta as
duas! Lilith, por que você está ainda parada que não foi tirar a blusa? Kyra já
mandei você se sentar e tomar o seu café da manhã.
— Mas...
— Lilith nem
mais um pio e não me faça ir até aí tirar essa blusa.
Ela saiu batendo
os pés. A casa tremeu com a batida da porta do quarto dela, se tinha alguém
ainda dormindo acabou de acordar depois dessa.
— As suas botas
estão molhadas, vão cheirar mal se as usar.
Dei os ombros
não tinha outra mesmo.
— Por que não
usa algo mais leve, elas parecem ser tão pesadas e quentes.
E eram mesmo,
são botas de inverno, as usar em pleno verão é um saco ainda mais molhadas.
— Mãe, sabe
perfeitamente que não tenho outra.
Ela ficou me
olhando como se me visse pela primeira vez depois de muito, muito tempo.
— Tem aulas
muito importantes hoje?
Tentativa de um
diálogo? Essa era nova pra mim.
— Nada de mais.
— Vou me trocar
e então saímos está bem?
— Certo. — Se
ela queria bancar a mãe generosa eu é que não ia reclamar, ia ser bom mesmo
chegar seca pra variar e não precisar me trocar antes da aula.
Hoje que eu
tinha tempo para o café da manhã tinha perdido a fome.
Fiz o sanduíche
duplo pro almoço, o embalei e coloquei na mochila. Tinha mais de uma hora pra
chegar na escola. A espera ia ser longa, aproveitei pra terminar a redação que
tinha de entregar amanhã.
— Kyra, coloque
o cinto.
— Eu já estou de
cinto mãe. — Era a primeira coisa que eu fazia quando eu entrava no carro da
minha mãe, o Ford antigo dela não inspirava muita segurança e também a minha
mãe não era assim nenhuma motorista tão boa, pra falar a verdade ela é meio
barbeira. Andar de carro com ela é uma experiência meio atemorizante.
— Pegou tudo? —
Ela olhou pra mim e a minha mochila.
— Tudo. — Essa
versão boazinha da minha mãe tá começando a dar nos nervos.
— Essa sua calça
está manchada, não quer trocar, temos tempo ainda.
— Não precisa
mãe, a outra está molhada, só me resta essa mesmo.
Ela me olhou
tentando descobrir algo que eu não tinha a menor idéia do que fosse.
— O que foi?
— Está falando
sério? Você está sem roupas e sapatos?
— Mãe, no mês
passado eu pedi uma calça lembra, só que em vez de dar pra mim você comprou pra
Lilith. — Ela só balançou a cabeça e saiu cantando os pneus.
Liguei o rádio,
estava em uma estação que só toca hip hop, fui trocar.
— Deixa aí, eu
gosto dessa estação.
A minha mãe
curtindo hip hop? Eu realmente desconheço essa mulher que está no corpo
da minha mãe.
— Mãe, a escola
fica pro outro lado.
— Eu sei você
precisa de roupas novas.
Fala sério? Ela
disse isso mesmo o que eu ouvi? De que eu preciso de roupas novas?
CARACA.
Vou ganhar
roupas novas, eba.
Será que eu devo
ficar menos animada? Ou mais animada?
Alguém bem que
podia me explicar as regras desse mundo alternativo ou pelo menos me dar o
manual básico de sobrevivência. Acho que eu devo estar sorrindo igual a uma
boba agora.
— Er, mãe,
acabou de passar pela entrada. — Disse ao olhar o estacionamento da maior loja
de departamentos de Austral ficar para trás. Agora ela teria de dar uma volta
enorme e eu bem sabia que ela detestava isso, eu ia acabar com o ouvido ardendo
de tanta reclamação.
— Que entrada? —
Ela estava meio aérea, será que tinha pegado algum vírus nessa viagem que ela
ganhou? Desde que ela voltou estava estranha. Tudo estava estranho depois desse
final de semana.
— A da loja de
departamentos.
— Não vamos pra
lá.
Não? Como assim
não vamos pra lá? Ai não, será que vou ganhar roupas compradas no Austral Big
Supermercados? Não, ele fica do outro lado, então só resta..
Oh-oh.
O Exército da
Salvação!
Droga, droga,
porcaria. Eu sabia, era bom demais pra ser verdade. Não acredito que ela vai
até lá buscar roupas pra mim...
— Ande Kyra, não
temos a manhã toda.
—Hã. Onde
estamos? — Aqui não é o Exército da Salvação. Tem muitas árvores e carros
chiques parado.
— Gueb! Quer
roupas novas ou não?
— Estamos na
Gueb? — Fala sério! A loja mais maneira de roupas da cidade. A loja onde dez
entre dez populares compram roupas e euzinha estou aqui?
A minha mãe já
havia descido e estava quase entrando na loja enquanto eu fico parada igual a
uma jacu. Desembolei o cindo e desci correndo, quase vou de cara no asfalto, a
minha bota prendeu na porta. Bati a porta do carro e entrei correndo na loja
atrás da minha mãe que já estava falando com uma vendedora.
Quais será as
minhas chances de ganhar duas calças, um sapato e uma blusa nova?
Pelo preço da
loja vou ficar feliz se ganhar um jeans novo e um sapato.
— Kyra, onde
esteve?
— Aqui mesmo.
A minha mãe não
gosta muito que a chamemos de mãe em público, ela diz que não é tão velha assim
pra ter filhos tão grandes. Comecei a fuçar pela loja, espero que a mãe esteja
paciente hoje, ia ser difícil escolher uma calça no meio de tantos modelos
diferentes.
— Kyra!
— Aqui! — Só
levantei a mão, estava concentrada olhando as blusas em uma arara.
Fui arrastada
pela minha impaciente mãe até um provador, a vendedora toda sorridente jogou um
monte de roupas em meus braços e fechou a cortina. Olhei pra tudo aquilo, devia
ter umas dez calças e umas vinte blusas – pelo menos.
— Mãe é sério,
não precisa comprar tudo isso, fico mais que feliz com umas duas calças e outro
sapato.
— Tudo bem, só
experimente.
Era o quarto par
de botas que eu experimentava.
— Qual você
gostou?
— Da marrom. —
Confortável, resistente, ela tinha cara de que ia durar um bocado, apesar de eu
ter gostado de todas, mas não devemos exagerar com a generosidade alheia.
— Ela vai levar
a marrom e as duas pretas.
Ops, três? O que
eu fiz pra merecer? Droga, se a Lilith ver tudo isso ela vai confiscar tudo.
— Mãe, escuta, é
legal isso que a senhora tá fazendo, eu realmente tô precisando, mas não
precisa comprar tudo isso não. — Como é que eu vou fazer entender que se ela
comprar tudo isso quem vai acabar usando é a minha irmã e não eu?
— Tudo bem Kyra,
pense como um presente de aniversário antecipado.
— Mãe é sério.
— Você não quer?
— Quero, mas...
— Mas o quê?
Merda!
— A Lilith vai
acabar confiscando boa parte disso e quando eu finalmente conseguir pegar de
volta vai estar tudo destruído como a minha blusa dessa manhã. — Claro graças a
ela usar dois números a mais que eu.
— Não se
preocupe com isso. — Ela me deu tapinhas em minha bochecha.
— Tá vou tentar.
— Eu lhe pego na
saída da aula.
Eu olhei o carro
se afastar, carona pra casa. Legal.
Não pensei mais
nisso. Quem sabe eu não acabava gostando desse mundo paralelo. Ganhei um
guarda-roupa novo, carona pra escola. Balancei a cabeça e corri pra aula, já
estava atrasada.
Passei o dia
inteiro com a cabeça longe, o professor Gomes me chamou a atenção três vezes na
aula, eu queria saber o que estava acontecendo. Fui pro estacionamento sem
muita esperança na minha carona, a fila estava grande de carros parados, o Ford
desbotado da minha mãe estava lá, parado no meio da fila. Fui andando
calmamente até lá, a Lilith estava parada ao lado do carro tagarelando algo em
seu inseparável celular.
— Oi mãe. —
Disse ao me acomodar no banco e colocar o cinto.
— Que fila hein?
— É o trânsito é
meio complicado na saída.
— Acho que é
melhor você ficar com o carro, ao invés de eu vir buscá-la todos os dias.
Olhei pra ela
séria.
— Tá falando
sério?
— Sim, se você
não se importar de levar a Petúnia junto.
— Claro isso se
ela não se importar de ir comigo, o pessoal tem certa implicância comigo.
— Não vão mais
ter. Todos respeitam quem está motorizado.
Uau, isso é
sério?
— Você sabe
dirigir não sabe?
Sorri pra ela.
— É claro mãe.
— Então está
bem. Você fica com o carro e dá carona pra Petúnia.
— Quem fica com
o carro? — Lilith colocou a cabeça pra dentro do carro.
— A Kyra, vou
deixar o carro com ela.
— Ei eu sou a
mais velha, deveria ficar com ele já que você o está passando pra frente. — Ela
entrou no banco de trás com cara de poucos amigos.
— Você não ia
querer esse carro Lilith, eu te conheço muito bem. Você é a pessoa mais fútil
da face da terra. — Minha mãe deu um olhar sossega-leão pelo espelho
retrovisor.
— E daí? Eu ia
gostar de ter um carro só meu pra variar.
— Tudo bem, eu
deixo o carro com você, com a condição de você voltar a dividir o quarto com a
Kyra.
— Corta essa,
nem pensar.
— Então o carro
fica com a Kyra e não se fala mais nisso.
O trânsito
estava lento, o lamento irritante da Lilith no banco de trás era uma distração.
A minha mãe está certa, não existe ninguém mais fútil que a Lilith na face da
Terra.
Quem diria, eu
motorizada. Um guarda-roupa novo, um carro, o que mais falta acontecer? Só o
Cedric começar a falar comigo.
Minha mãe meteu
a mão na buzina, ela não estava com muita paciência pro desfile no
estacionamento.
— Ei Kyra será
que você pode me encontrar mais tarde? Olá senhora.
— Isso é alguma
piada? — Cedric o garoto mais fantástico do colégio está debruçado na minha
janela e falando comigo? Certo, estou em um mundo paralelo, agora eu acredito.
— Estamos no
mesmo grupo de história e eu tenho de viajar nos próximos dias e como temos de
entregar um trabalho na semana que vem será que você se importa de fazermos
isso hoje? Pode ser na minha casa ou na sua, tanto faz.
Eu fiquei
olhando pra ele sem conseguir articular nada, a minha mandíbula conseguiu ficar
congelada.
— Não estamos em
grupo nenhum. Eu me lembraria. — Isso é alguma piada? Será que resolveram fazer
uma pegadinha com a minha cara?
— Foi escolhido
na semana passada, você não veio na aula. Então? Na minha ou na sua casa? Se
você quiser eu te dou uma carona depois.
— Pode ir
benzinho, liga que eu vou lhe buscar. — Os olhos da minha mãe estavam
brilhando, quem não ficaria assim diante do anjo noturno do colégio. Respirei
fundo e saí do carro. Essa era a segunda vez que ele falava comigo. O carro
dele estava há poucos metros de distância, entrei muda, a minha cabeça
fervilhava de perguntas não formuladas, ele segurava um sorriso, parecia estar
se divertindo com tudo isso.
— Por que isso
agora?
— Por que o que?
— Ele me olhou confuso.
— Você nunca
fala comigo e pelo que eu saiba eu não estou no seu grupo, então por que esse
teatro?
— Nossa a garota
é arisca, você morde também? — Ele me olhava sorrindo por cima do capô do
caríssimo carro dele.
— Uff.
Não sei como,
mas ele conseguiu sair da confusão do congestionamento antes de todo mundo. Ele
dirige mais rápido que o Amon, será que uma premissa básica do cromossomo Y,
ser ensandecido?
— Quer diminuir?
Quero chegar viva em casa. — Comecei a olhar as minhas unhas, o vulto na janela
estava me enjoando.
— Achei que
gostasse de velocidade.
— Não, ela me
deixa enjoada. — Eu tentava me lembrar de como era respirar.
— Vou me lembrar
disso futuramente.
Futuramente?
Será que ele ia começar a conversar comigo agora?
— Como foi o seu
final de semana? — Ele tentava conversar, era estranho, o olhar dele começou a
me dar arrepios.
— Bom.
— Soube que você
teve um acidente na piscina semana passada.
Pombas será que
a escola inteira ia me azucrinar por conta disso.
— É, eu exagerei
no treino.
Ele aquiesceu,
depois disso o silêncio ficou estranho.
Queria perguntar
sobre o final de semana dele. Será que ele tem namorada? Nunca o vi com nenhuma
menina. Será que ele gosta de pipoca com filmes de terror como o Amon? Sorri ao
me lembrar dele.
— Olha só, o meu
trabalho está quase pronto, acho que não tem muito o que fazer, se você quiser
coloco o seu nome.
O Amon fez toda
a pesquisa pra mim mesmo, eu só tenho de terminar de escrever.
— Eu também já
estou com o meu praticamente pronto, só estou sendo gentil em fazer você
participar. — A voz dele perdeu todo o calor de minutos atrás, agora soava
ríspida, quanta diferença com o meu amigo peixe dourado, fiquei com vontade de
mostrar a língua a ele e dizer umas boas.
— OK, ok. —
Melhor não discutir.
Relaxa Kyra e
aproveita os seus minutos com ele, talvez não tenha outra chance, se bem que
ele estava começando a me dar nos nervos. O que era pra ser perfeito estava me
saindo uma catástrofe ambulante. Continuei a olhar pras minhas unhas, acho que
seria bom se eu começasse a andar com uma lixa de unha na mochila, minha vida
social-acadêmica estava bem movimentada ultimamente.
— Ei, já não te
disse pra ir devagar? — Ele fez uma curva tão rápida que eu só não saí rolando
pelo carro porque estava com o cinto de segurança muito bem afivelado.
Ele estava com
um ar zangado. Pronto o que foi agora? Se ele queria se matar que fizesse
sozinho eu não estava a fim de ir junto não.
— Se você não
diminuir essa porcaria eu salto desse carro! — Ele me olhou fuzilando como se
eu é que estivesse errada, só que eu não estava de brincadeira. Ele diminuiu um
pouco a velocidade, pelo menos passou a dirigir mais comedidamente apesar de
ainda estar muito rápido.
Luz e Trevas...
Amon era a Luz,
a alegria despreocupada enquanto ele parece as Trevas, o ar soturno dele me
lembrava madrugadas frias. Balancei a cabeça, a cada dia que passava os meus
anjos ficavam ainda mais distantes um do outro.
Já tínhamos
saído da rodovia agora ele fez uma curva rápida na avenida o sinal fechou e ele
pisou no freio. Eu realmente gosto desse esquisito, mas até eu tinha os meus
limites. Aproveitei o sinal fechado e enquanto soltava o cinto abri a porta
deslizando pra fora, estava bem perto de casa mesmo ia chegar rapidinho.
A minha saída do
carro deve tê-lo pego desprevenido, porque quando ele percebeu, eu já estava
fora do carro, o que não o impediu de sair também e agarrar o meu braço sem
nenhuma consideração.
— O que pensa
que está fazendo?
— Eu avisei se
quer se matar faça sozinho, não comigo! — Dei um safanão e ele largou o meu
braço aturdido.
— Você é louca?
— Ele estava com os olhos arregalados como se eu houvesse falado algo de
absurdo a ele.
— Não entrei em
seu carro? — Saí lhe dando as costas.
Mais uma
gracinha daquelas e eu iria transferir a minha obsessão pro Amon, pelo menos
pra ele eu tinha uma desculpa, – minha gratidão eterna.
O som de rodas
estrepitante no asfalto me fez virar a cabeça. Cedric jogou o carro em cima da
calçada me impedindo de continuar a andar, o olhar dele estava inumano de tão
furioso.
Há Amon que
saudades do seu jeito doce e saudável de ser.
Quanto mais
furioso ele olhava pra mim eu lançava o meu olhar mais entediante, claro que
isso o enfurecia ainda mais. Era um joguinho que eu aprendi, eu deixava a
pessoa tão irritada mais tão irritada que ela engolia o que queria me dizer e
ia embora assim eu continuava a fazer o que havia planejado. Sempre funcionava!
E ele estava
muito irritado, não tenho idéia do porque, mas estava e eu o estava deixando
ainda mais a ponto dele ter de controlar a respiração.
— Entre no
carro, por favor.
Bom se ele pedia
por favor... dei a volta e abri a porta.
— Se fizer
qualquer gracinha já sabe eu vou e não volto! — Nem me dei ao trabalho de
colocar o cinto, era mais fácil se tivesse de sair do carro. Ele fechou os
olhos e deve ter contado até dez, não reparei comecei a olhar pela janela
escura fechada.
— Não vou pedir
desculpas... — Ele começou arrogante de novo.
— Corta esse
discurso, quem tem um problema aqui é você e não eu, então se controle ou eu
vou embora e você vai ter de se virar sozinho. Fui clara?
Ele me olhou com
aquela cara de espanto de novo, nunca o vi tão branco, a pele chegava a ser
translúcida. Voltei a olhar pela janela, ele ligou o carro e após descer da
calçada o carro começou a rodar em uma velocidade normal pra variar. O silêncio
imperava absoluto, ele não falava nada e eu também não, nenhum dos dois dava o
braço a torcer. Não era a minha culpa ele ter aquele acesso de piti
dele, só dei por mim que eu não sabia onde estava quando saímos das ruas da
cidade. Pensei em perguntar só que sou muito teimosa pra isso, a única coisa
que eu pensava que era um pouco longe pra andar se eu tivesse de voltar
sozinha, então comecei a me lembrar da prova de matemática, com certeza tinha
me saído mal, matemática nunca foi o meu forte mesmo. Tinha de pegar o meu CD
do Linkin Park com o Bruce antes que ele achasse que era dele de novo,
da última vez ele deu o meu CD pra Lilith tive o maior trabalho pra pegar de
volta. As árvores pareciam árvores pela janela, fazia um bom tempo que eu não
vinha aos bosques, quem sabe agora eu não vinha mais pra cá, ia ter mais tempo.
Pra passar o
tempo comecei a fazer listas do que tinha de fazer.
Primeiro a dos
trabalhos tinha dois pra terminar ainda, mas tinha umas três semanas de prazo,
até o final da semana daria pra terminá-los.
Lista das
pesquisas... pesquisar sobre os renascentistas pra aula de história, precisava
fazer a professora parar de pegar no meu pé, por isso tinha de ter a matéria na
ponta da língua, já ia me esquecendo a pesquisa pro Amon. Que estranho, as
árvores começaram a se transformar em um borrão, dessa vez fui eu quem contou
até dez.
— Diminua! — Eu
não olhei pra ele, ou era capaz de eu dar um ataque de piti. Ele
continuou a acelerar a minha raiva começou a entrar em ebulição, quem aquele
cara pensava que era?
— DIMINUA! — Eu
estou muito furiosa, em vez de diminuir ele acelerou ainda mais, eu não pensei
simplesmente fiz. Pisei no freio e o carro engasgou descontrolado. Ele rosnou
furioso, os dedos dele estavam tão brancos que era um milagre o volante estar
inteiro ainda.
O carro começou
a derrapar pela estrada vazia, com muito custo ele conseguiu controlar até
parar atravessado no meio da pista. Ele ofegava, eu abri a porta dele.
— SAIA! — Ele
ficou me olhando como se eu fosse uma demente completa, devo ser, estou
literalmente expulsando ele do próprio carro.
— AGORA! — Eu o
empurrei pela porta aberta, parecia que eu estava empurrando uma parede de
concreto, quando ele saiu do banco eu o assumi fechando a porta e colocando o
cinto de segurança. Abri a porta do carona pra ele. Ele ficou parado como um ás
de espadas no meio do asfalto tentando se decidir de arrancava a minha cabeça
ou não naquele instante.
— Vai entrar
primeiro ou me matar? Não tenho o dia inteiro. — Aquilo o tirou do transe e ele
entrou resmungando algo que eu não entendi. Dei meia volta no carro e retornei
em uma velocidade normal agora pelo caminho que viemos, ele não me disse uma
palavra. Como eu não queria saber de conversa liguei o rádio, o som da música
da Britney Spears encheu o carro. Sei que os garotos a acham gostosa, só não
curtem muito a música, deixei aí de propósito, pela ruga na testa dele eu sabia
que a tortura pra ele ia ser grande, só de provocação comecei a cantar com a
minha voz esganiçada. Ele flexionou a têmpora.
Bem feito que
você tenha uma bela dor de cabeça.
Ele suspirou
olhando as árvores que passavam lentas pela janela.
Após uma dezena
de músicas da Britney e Cia chegamos em minha casa, desci calmamente.
Se ele queria
fazer o trabalho que eu assumisse o controle e o fizesse em um terreno neutro.
O carro da minha mãe não estava na garagem, ela devia ter ido visitar a tia
Angelic, toda quarta-feira ela dava uma passada na casa dela, isso significava
que eu ainda tinha pelo menos umas duas horas, tempo mais que suficiente pra
que eu terminasse com esse fatídico trabalho e dispensasse o bonitão.
E por falar
nisso ele é meio lento no entendimento, fui obrigada a bancar o cavalheiro
e abrir a porta ou ele não desceria daquele carro, não que desse vontade de
sair dele, o carro era realmente uma maravilha, mas o trabalho nos espera.
— É mais fácil
fazer o trabalho em uma mesa não concorda? — Deixei a porta aberta do carro
dele e fui abrir a porta de casa, se ele fosse inteligente assumiria a direção
do carro dele e desapareceria, eu com certeza teria feito isso, ao passar pela
porta vi que ele estava atrás de mim, é teria de terminar esse trabalho.
Uma hora e meia
de absoluto silêncio e de muito escrever o fatídico trabalho estava pronto e
ele continuava irritado. Cheguei a fazer pipoca e ele nem tocou, muito menos no
suco, aí desisti de ser educada.
Ele estava
saindo com as folhas escritas, com certeza ia passar tudo a limpo.
Eu bem que tinha
uma lista interminável de perguntas a fazer e estava tão ou mais irritada do
que ele. Ele parou na porta e se virou o seu olhar após muitas horas estava
mais normal sem toda aquela irritação.
— Não sou uma
pessoa paciente, perco a calma com muita facilidade, eu... boa noite!
Uau! Será que
isso foi uma tentativa de um pedido de desculpas?
— “Sem
sangue, sem crime”[1] — Eu disse
apaziguando, seja lá o que houvesse acontecido mais cedo. Ele começou a
balançar a cabeça e por fim um arremedo de sorriso apareceu em seu rosto, aos
poucos foi se ampliando e de repente ele estava rindo, não gargalhando.
— Eu deveria
saber... todas querem ser ela não é?
— Ela? Ela quem?
— Do que esse garoto está falando agora?
— Sem essa! É só
uma história. Nada a ver. — Eu tratei de cortar o barato dele antes que
começasse a me enquadrar na categoria das deslumbradas pelo Pattinson.
—
E todas não querem um como é o nome dele mesmo? — Ele sorria cínico, ele sabia
exatamente quem era o personagem, assim como eu, mas não iria falar.
— Não
generalize, muitas querem o ator não o vampiro, quem é que iria querer um
namorado vampiro? Só uma louca mesmo.... se bem que a Bella não bate muito
bem... talvez o Jake... Balancei a cabeça, ele não ia fazer eu embarcar
nessa loucura. Ele só ria.
— Isso até
descobrir que o cara de quem você está apaixonada É um vampiro, aí você mudava
de idéia.
— Não, essa
coisa de trevas não é pra mim, gosto do sol.
— O que e perder
a oportunidade única de virar purpurina? — Agora ele realmente gargalhava.
— Pelo menos ia
economizar um bocado em Glitter pros trabalhos da escola.
Ele riu mais
ainda.
— Como se um
morto pudesse brilhar assim.
— Quando eu
morrer eu te aviso.
Ele parou de
sorrir e me olhou sério. Ops, será que eu disse algo errado?
— Boa noite Bella
Cullen! — Ele falou e saiu.
— Sou Kyra e não
Bella! — Bati a porta com vontade, garoto estúpido! Tinha de estragar
tudo. E o que deu em mim de ficar citando frase do livro da SM[3]? Merda, merda,
porcaria. Agora nunca vou saber se ele tem alguma namorada.
[1] N. A. - Trecho do livro O
Crepúsculo da autora Stephenie Meyer, quando Eduard o vampiro vai ao hospital
ver como Bella está após o acidente do quase atropelamento com a van do Tyler.
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